Capítulo 14
I’m free as a bird
Certo.
O que eu faria agora...
Estava
defronte aos portões de bronze da mansão, de olhos fechados e
respirando profundamente, aspirando o máximo de ar que meus pulmões
conseguiam em uma inútil tentativa de me acalmar. Eu realmente não sabia
o que faria. Pensei em até voltar para a casa rindo e dizer: “AHÁ! Te
peguei, Marry!” e lhe dar alguns tapinhas nas costas. Obviamente eu não o
faria.
Moraria debaixo de alguma ponte ou nos becos de Bolton,
pedindo esmola em semáforos e envergonhar Marry ainda mais. Seria
engraçado, entretanto.
Mexi nervosamente em meu cabelo e desci minhas mãos para minha testa, forçando-me a pensar em uma solução.
Arrumei a alça da mochila em meu ombro, e coloquei meus pés para andarem em direção à qualquer telefone público próximo.
Na
verdade, meu desespero meu fez praticamente correr pela White River
Street. Ainda era relativamente cedo e as donas-de-casa aguavam seus
jardins enormes, aproveitando enquanto o inverno não chegava para
arrasá-los. Também aproveitavam o momento para xeretar a vida das outras
moradoras. Essas riquíssimas donas-de-casa – as quais não tinham nada
para fazer além de rezarem para que seus maridos enriquecessem mais –
competiam entre si sobre quem possuía o jardim mais verde, com as flores
mais caras e coloridas, o jardineiro mais bonitão... Aproveitavam essa
época já que, no inverno rigoroso do Reio Unido, tudo fica debaixo de
neve e os jardineiros tiram suas folgas.
Algumas me olharam com
certa curiosidade, criando hipóteses sobre meu estado físico aparente:
roupas largadas e uma feição desesperada. Isso me fez apertar ainda mais
meu passo.
Dois quarteirões para frente encontrei um típico
telefone público londrino e não tardei a entrar dentro da cabine
vermelha. Coloquei uma libra no lugar indicado e pensei por alguns
instantes antes de discar um número.
Eu não poderia ligar para
Me. Sua mãe não era muito diferente da minha, além de serem grandes
amigas. Imagine eu, chegando em sua residência de mala, cuia e um
espírito rebelde? Ligaria para Marry desesperada, e esta me buscaria com
um rifle em mãos.
Não podia ligar para Flávia. Isso era óbvio.
Jamais ligaria para Chay. Razões óbvias, idem.
Arthur e Micael eram boas opções...
Disquei então um número que veio em minha mente e aguardei atenderem.
“Alô?”
escutei uma voz do outro lado que fez minhas pernas perderem um pouco
de controle e minhas mãos tremerem. O desespero enfim tomou conta de
mim.
“Fernando?” sibilei vacilante. Eu piscava freneticamente.
“Luinha?” o garoto perguntou, e pude a surpresa em seu tom. “Você está bem?” seu tom mudara para preocupação.
“E-eu...
Eu não sei! Eu estou confusa, acabei de sair de casa, Benjamin estava
lá e Marry...” comecei a falar sem pausas, atropelando todas as
palavras.
“Espere. Benjamin estava em sua casa?” o tom era de
incredulidade. Impressionante como ele podia mudar suas emoções a cada
instante.
“Estava!” bufei ainda raivosa. “E então eu saí de lá imediatamente! Mas... Agora não sei o que fazer e...”
“Onde você está?” o garoto me interrompeu, impaciente.
“No telefone público da White River com a Major Avenue.”
“Certo,
estou indo te buscar. Não saia daí, entendeu? ” Fernando soou
autoritário e desligou o telefone sem escutar minha resposta.
Eu não tinha para onde ir, de qualquer maneira.
Em menos de vinte minutos, vi Fernando estacionar sua moto lentamente perto da calçada que eu estava sentada.
Usava
uma jaqueta de couro preta, um jeans com um rasgado no joelho e nos
pés, um All Star igualmente surrado. Tirou seu capacete – o qual não me
deixava ver seu rosto por tampá-lo totalmente e o pequeno vidro da
frente ser esfumaçado – ofuscando meus olhos com aqueles cabelos
castanhos. Eles, obviamente, estavam mais bagunçados que o normal devido
ao capacete, mas era incrível como continuava... Indefectível. Sua
testa estava enrugada e suas sobrancelhas arqueadas, deixando claro seu
aborrecimento. Perfeito.
Saltou de sua moto e veio em minha direção
sem olhar para mim. Olhava para trás, sabia que à algumas quadras era
minha casa e, quem sabe, procurava por um carro conhecido. Bufou e me
encarou assim que chegou à poucos centímetros de mim. Não se sentou, por
isso tive que olhar para cima para poder vê-lo, mas arrependi no
momento seguinte que os feixes de luz começaram a irritar meus olhos.
“O
que aquele filho da mãe queria?” Fernando disse entre dentes e uma
enorme vontade de rir me abateu. Ele ficava um tanto quanto charmoso
naquele estado...
“Olá para você também, Fernando” falei
descontraída, vendo-o relaxar os músculos logo após. Suspirou alto e se
sentou ao meu lado no meio-fio. Ficamos em silencio alguns instantes.
“Não vai me contar?” ele disse irritado, mas com um singelo sorriso.
“Não
sei o que ele queria. Saí de casa antes que ele pudesse dizer qualquer
coisa” adiantei, e um leve desespero me dominou novamente. Eu – quase –
havia esquecido que era uma sem-teto agora.
“Hum” Fernando não
pareceu se convencer e começou a me encarar desconfiado, talvez tenha
percebido meu desconforto. Levei a mão até minha nuca, esfregando-a
nervosamente.
“Bem, na verdade eu meio que... Fugi... Não foi
exatamente uma fuga, já que falei em alto e bom som à Marry que estava
saindo de casa para nunca mais voltar...” ri nervosa sem encarar
Fernando. Estava envergonhada por ser parecer tão infantil. Qualquer
pessoa pensaria isso de mim.
Senti os olhos do garoto sobre mim, analisando-me cautelosamente.
“Então agora você é uma sem-teto?” ele disse divertido. Não achei graça, mas não me manifestei.
“Basicamente” falei simplesmente, ainda sem o encarar.
“Como
aqueles jovens rebeldes que andam aparecendo na Tv?” percebi que ele se
esforçou para conter um riso. Acho que Fernando seria um ótimo alvo
para eu descarregar minha raiva daquele dia.
Apenas dei de ombros.
Vi, pelo canto do olho, Fernando abrir e fechar a boca, tentando dizer algo.
“Admiro
você, Luinha” falou, dessa vez sério. Virei meu rosto sutilmente em sua
direção, sem aparentar muito interesse, mas curiosíssima para saber o
porquê dele me admirar.
“Claro, há muito o que se admirar em uma
sem-teto rebelde” disse sarcástica, voltando a encarar uma casa qualquer
à minha frente. Fernando se aproximou um pouco mais de mim.
“Eu
falo sério. São poucas as pessoas hoje em dia que têm coragem de
enfrentar algo que pareça errado... A maioria só consente...” ele se
explicou, ainda com os olhos fixos em mim.
Senti-me lisonjeada, devo
admitir. Não tinha pensado por esse lado, para mim, eu era apenas uma
patética riquinha, mimada e rebelde.
“A maioria tem onde morar...”
rebati, relembrando-o da minha situação. Fernando riu. Rir da desgraça
alheia realmente nos faz bem.
“Já falou com Me?” ele sugeriu.
“A
mãe dela é melhor amiga de Marry...” respondi alheia, já chegando à
conclusão de que eu estava encurralada. Fernando ficou em silencio,
pensativo. Provavelmente chegara à mesma conclusão que eu. Bolton
Bridge, aí vou eu.
“Você poderia... Você sabe...” ele pigarreou.
Arqueei as sobrancelhas, incentivando-o a continuar. “Sabe... Passar um
tempo comigo... Quero dizer, na minha casa...” vi suas bochechas corarem
e meu estômago afundar. Imagine eu, Lua Blanco, vivendo sob o mesmo
teto que Fernando Roncato! Parecia, ao mesmo tempo, uma ótima e absurda
idéia. Mas vamos combinar, eu não tinha muitas opções...
“Não sei,
Fernando...” mostrei minha indecisão. Seria muito inconveniente da minha
parte aceitar. Mudar toda a rotina da família, abusar da hospitalidade,
comer, gastar energia elétrica...
“Vamos, Luinha... Onde você
pretende ficar?” ele pareceu apreensivo. Dei de ombros e o garoto passou
seus braços pela minha cintura. Não nego que encolhi e senti minhas
bochechas inflamarem.
“Não vou incomodar?” perguntei um pouco tímida, ainda incerta.
“Nunca” ele disse simplesmente, me encarando profundamente.
“Mas
e seu pai?” rebati, procurando motivos para Fernando rever sua
proposta. Eu queria aceitar, em contrapartida, meu bom senso me
reprimia.
“Seria um prazer receber a filha do grande John em minha
humilde residência.” ele forçou uma voz grave que, no caso, presumi ser
de seu pai, o senhor Lewis.
“Eu... Eu prometo que ajudo nas despesas
até encontrar um apartamento para mim...” cedi. Parecia-me uma coisa
descente a se fazer, se era para eu aceitar. Fernando levantou os braços
e gritou Aleluia! para o nada.
“Não se preocupe com essa parte
Luinha” ele disse após cessar algumas risadas. “Você pode ficar o tempo
que quiser” assim que terminou sua frase, não me agüentei, tive que
envolver meus braços em seu pescoço, apertando-o contra meu corpo em um
abraço forte. Senti uma intensa gratidão naquele momento. Há um tempo
atrás, Fernando seria a ultima pessoa a qual eu esperaria – ou pediria –
ajuda.
“Muito obrigada, Fernando. De verdade” apertei-o mais ainda
mais. Ele pareceu responder, já que suas mãos continuavam firmes ao
redor da minha cintura e sua respiração batia quente no meu pescoço.
Não sei quanto tempo ficamos daquele jeito, mas foi suficiente para não querer largá-lo tão cedo.
Fernando cheirava tão bem... Não usava perfume, mas exalava um cheiro de sabonete de lavanda entorpecente.
Meu
rosto estava mergulhado em seu pescoço e, sem ter controle sobre meus
atos, depositei um sutil beijo no local. No mesmo instante, vi Fernando
se encolher um pouco e não contive um sorriso.
E então, após alguns segundos, ele lentamente moveu seu rosto, e eu fui obrigada a deslocar o meu de seu pescoço.
Meus
olhos, que antes estavam fechados, se abriram vagarosamente e deram de
cara com os de Fernando, que estavam cerrados,entretanto continuavam
intensos e penetrantes.
Minha respiração falhou e eu me perguntei
por que diabos esse garoto conseguia me deixar assim apenas com um
olhar. Era insano! Inexplicavelmente insano!
Meu coração acelerou
subitamente e batia tão forte contra meu peito que, pela nossa
proximidade, tinha certeza que Fernando poderia escutar. Engoli seco.
Vi
uma das mãos do garoto virem de encontro com a minha bochecha e
acariciar sutilmente a mesma, me fazendo fechar os olhos
automaticamente. Meu estômago afundava em nervosismo.
Era estranha aquela sensação. Assustadora, na verdade. Parecia que eu poderia ter um ataque cardiovascular a qualquer momento!
Algo
dentro de você pulsa intensamente, fazendo sua respiração falhar, suas
mãos suarem ou tremerem, e às vezes os dois. Sua boca saliva, suas
pernas parecem que não vão te agüentar por muito tempo, e é praticamente
impossível encarar certos olhos e se manter em sã consciência.
Mas
como de costume, algo a fundo dispersou minha atenção. Dessa vez me
fazendo saltar quando percebi que o barulho era uma buzina conhecida: a
do Pontiac.
“Oh meu Deus” exclamei baixinho, vendo Fernando se levantar bruscamente, com uma feição para poucos amigos.
Benjamin saiu do carro batendo a porta brutalmente e veio, com a mesma expressão de Fernando, em nossa direção.
“Lua,
sua mãe está desesperada” Ben disse curto e grosso, encarando Fernando,
o qual mantinha seus olhos fixos no garoto alto de topete bem moldado e
olhos incrivelmente azuis. “Venha comigo, por favor.”
Aquilo não me parecia um pedido ou uma súplica. Era mais uma ordem.
“Ela não vai a lugar nenhum com você, Benjamim” Fernando disse vorazmente, fechando as mãos em punho.
“O
que está fazendo aqui afinal, Roncato?” Suede disse com desaprovação,
olhando Fernando dos pés à cabeça num ato de superioridade.
“Não lhe
interessa, Suede. Apenas vá embora daqui, pois Lua não irá com você”
Fernando manteve-se firme diante do mais velho. Ben soltou uma risada
cínica e estridente.
“E quem vai me impedir de levá-la? Você?” ele
se aproximou ameaçadoramente e, pelos punhos, pude perceber que a
paciência de Fernando estava por um triz.
“Se for preciso...”
Fernando respondeu entre dentes, vendo Benjamin se aproximar cada vez
mais de onde estávamos. Fernando se posicionou à frente de mim, como se
quisesse me proteger de um mal que se aproximava.
“Não seja tolo,
Roncato. Aquela ameaça de tempos atrás não foram suficientes pra você?”
Benjamin disse em um sussurro, tentando não me fazer escutar. Talvez
pensasse que eu não sabia. Isso me irritou profundamente, e eu nunca
havia sentido tanto ódio quanto naquele momento.
“Você vai ter que
fazer melhorar suas chantagens para me afastar de Lua.” Fernando se
aproximou do garoto, e vi que os dois estavam a poucos centímetros um do
outro. Aquilo não era bom.
E de repente, num piscar de olhos, vi
Fernando sendo afastado com um murro em cheio em seu rosto, fazendo-o
cambalear e bater em sua moto.
“FERNANDO!” gritei automaticamente e
fui em direção do garoto, totalmente desesperada. Ele não parecia ter
sentindo coisa alguma, já que levantou imediatamente e foi na direção de
Benjamin, dando-lhe um soco no rosto de volta. Instantaneamente, um
desespero enorme tomou conta de mim. Não havia coisa que mais me tirava
do sério que uma briga.
Antes que eu pudesse pensar em fazer algo
– apesar de não ter idéia alguma – Ben atingiu a barriga de Fernando,
fazendo-o encolher de dor.
“PAREM VOCÊS DOIS!” berrei mas nenhum pareceu escutar. Eu estava completamente invisível naquele antro de ódio.
Fernando se recompôs e empurrou Ben contra a porta do Pontiac de forma tão brutal, que pude escutar o vidro da janela trincar.
“Eu
poderia ficar o dia inteiro te dando uma surra sem ao menos me cansar,
mas prefiro gastar meu tempo de maneiras melhores, como tratando Lua do
jeito que ela merece ser tratada” Fernando disse entre dentes, mantendo
firmemente Benjamin contra o vidro rachado do carro. “E eu vou fazer de
tudo para que isso aconteça, e então é melhor que você fique longe dela”
o garoto terminou num tom extremamente ameaçador. Mas é claro que
Benjamin não deixaria barato.
“Espera, Fernando Roncato... Espera só
eu acabar com você” Ben disse no mesmo tom. “Eu vou fazer de tudo para
que nada dê certo pra você.”
“Pode tentar de tudo, Suede. Você nunca
vai conseguir acabar comigo, porque quem já está acabado aqui é você. E
agora eu repito” Fernando pareceu apertar Ben ainda mais contra o
vidro, e eu vi que ele poderia quebrar a qualquer momento.
“Fique-longe-dela.”
E então Fernando o soltou, dando as costas
imediatamente e agarrando minha mão, me levando em direção à moto. Eu
estava totalmente alheia àquela situação, não sabia o que falar, como
agir, eu não tinha certeza se tudo tinha sido real e se eu realmente
escutara todas aquelas palavras, tantas as vindas de Benjamin quanto as
de Fernando se arriscando para me proteger. Ou o que fosse.
Ele
subiu na moto e eu fiz o mesmo, colocando o capacete e em um segundo, a
moto já estava arrancando e deixando a imagem de Benjamin furioso para
trás.
A casa de Fernando era em um lugar bem distante da cidade.
Na verdade era um sítio simples afastado de tudo e de todos. A família
de Fernando sempre fora muito simples, sem muitas frescuras ou luxos.
Pouco para eles era suficiente para serem felizes. Regalias demais nunca
era sinal de coisa boa.
Então assim pegamos a rodovia principal de saída de Bolton.
O
vento batia com mais intensidade que antes devido à alta velocidade em
que a moto andava. Eu havia colocado um casaco antes, justamente para
não morrer congelada. Aquele ruído do vento em meus ouvidos e jogando
meus cabelos bruscamente para trás, me dava uma sensação incrível, nunca
antes sentida por mim, de liberdade. Minhas mãos estavam firmemente
postas na cintura de Fernando, apertando-o como nunca contra mim. Mas
naquele instante, permiti-me soltá-lo e meus braços abriram-se como se
eu pudesse pegar vôo a qualquer momento.
Gritei.
Gritei toda a
repressão antes entalada em minha garganta, dando lugar a uma nova
sensação. Eu era livre. E não havia sentimento melhor do que aquele.
Talvez a presença de Fernando melhorasse - muito - as coisas.
E então gargalhei.
Eu
estava realmente feliz. Feliz como nunca! Todas aquelas emoções novas e
confusas não me martirizavam nem um pouco, apenas aumentavam meu gosto
por aventuras. Viver intensamente, esse era meu novo lema. Bem vindos ao
Carpe Diem. Pelo retrovisor pude ver Fernando sorrindo abertamente,
mostrando sua satisfação. Eu podia ver a alegria transbordar de seus
olhos e aquilo me contagiava ainda mais, se é que era possível.
As
árvores passavam rapidamente por nós, todas com copas imensamente
verdes, transformando aquela estrada em um lugar reconfortante.
Envolvi
Fernando novamente com meus braços e recostei meu queixo em um de seus
ombros, observando os riscos amarelos pintados no asfalto passarem
abaixo de nós em uma velocidade incrível. Olhei no velocímetro da moto:
120 quilômetros. E eu não me importava. Pediria para que ele até
aumentasse mais a velocidade. Era visível a quantidade de adrenalina que
percorria minhas veias, misturada com uma dose incrível de endorfina e
serotonina.
Estava tudo maravilhosamente maravilhoso.
O
caminho até o sítio de Fernando durou exatos vinte minutos. Quinze
minutos de asfalto e os outros cinco de estrada de terra, e admito que o
medo tomou conta de mim novamente com aquele monte de buracos e
pedregulhos. A paisagem de árvores mudara para um vasto capim onde certo
gado pastava. E mais à frente eu pude avistar um casebre de madeira
pintado todo de branco no meio do gramado. Uma rede estava presa em dois
pilares na pequena varada, dando àquele lugar um toque ainda mais
aconchegante. Não havia barulhos de carros, nem aquele cheiro forte que
saía dos escapamentos, nem lojas amontoadas. Era tudo limpo...
Natural...
Um pequeno lago podia ser visto mais adiante e me lembrei
de certa vez ter sido traga por John para pescar ali... Ele e o senhor
Roncato eram grandes amigos desde sempre. Eu contei exatamente onze
cachorros enquanto a moto ia perdendo velocidade.
Cachorros de todas
as raças, cores e tamanhos, os quais vieram correndo em direção do dono
assim que ele recostou sua moto em uma cerca que separava a casa do
vasto pasto dos bois.
“Hey Bradock!” Fernando disse sorridente ainda
em cima da moto. Bradock era um cachorro enorme da raça boxer e fiquei
até assustada quando o mesmo pulou e ficou em cima de suas duas patas
traseiras, fazendo-o ficar do tamanho de Fernando. Os outros dez
cachorros pulavam ao nosso redor, latindo e abanando seus rabos para
chamar nossa atenção.
Fernando desceu da moto e me deu a mão para eu fazer o mesmo.
Uma vergonha enorme me abateu obviamente, e eu empaquei onde estava enquanto Fernando continuava andando.
“Hey!”
ele me gritou assim que notou a minha ausência. Eu olhava para o meu
tênis desgastado e apertava firmemente as alças da minha mochila,
repensando no que eu estava prestes a fazer. Talvez tudo não passava de
um engano. Eu não poderia abusar da bondade de Fernando e seu pai dessa
maneira! Não era certo!
“O que foi?” Fernando se aproximou de mim e
perguntou apreensivo, me olhando docemente. Fraquejei. E isso me fez
pensar que tudo aquilo era realmente uma péssima idéia. Aquele frio na
barriga não era normal, e eu tinha certeza de que pioraria se eu
continuasse ali mais um segundo.
“Nada...” me rendi àqueles olhos.
Era impossível não se sentir tranqüila quando eles me encaravam. Eu
poderia ficar perdida neles e recusar ajuda para me achar novamente.
Fernando
então estendeu sua mão e continuou a me encarar apreensivo. Olhei-a e
um milhão de coisas passaram pela minha cabeça. E um bilhão de
sentimentos. Eu não os entendia. Nenhum romance explicava o que eles
eram, e eu nunca tive a mínima noção do que eles seriam.
Segurei sua mão e vi um sorriso abrir em seu rosto, me fazendo abrir um sem pensar duas vezes.
Andamos
a passos largos em direção a casa com os cães aos nossos calcanhares.
Subimos os quatro degraus da frente e alcançamos a porta. Assim que
Fernando a abriu, um cheiro delicioso invadiu minhas narinas e fez meu
estomago roncar.
“Pai?” Fernando chamou pelo senhor Lewis mas sem receber resposta.
Passei
os olhos pelo interior da casa. Estávamos em uma salinha com dois
sofás, uma estante em frente dos mesmos com uma grande vitrola,
entretanto sem televisão. Fernando e seu pai não eram chegados em
modernidades.
Não haviam paredes separando aquele cômodo da cozinha, havia apenas um balcão de pedra.
“PAI?”
Fernando chamou mais alto, indo já em direção ao corredor mais à
frente. De repente vimos um homem aparecer como um vulto atrás de nós.
Ele tinha cabelos e bigodes grisalhos, era alto e seu corpo era atlético
para sua idade. Usava uma calça jeans rasgadas no joelho e suja de
terra, uma camisa xadrez vermelha e uma botina marrom com manchas de
lama nos pés.
“Lua! Como é bom te ver!” o pai de Fernando disse com
uma expressão verdadeira de felicidade. Eu percebi pelo seu enorme
sorriso.
O senhor Roncato veio de braços abertos em minha direção,
me dando um forte abraço ao chegar perto de mim, rindo feliz em meu
ouvido.
“É bom te ver também, senhor Roncato” falei sincera, retribuído o abraço na mesma intensidade.
“Como
você está bonita!” o mais velho disse me analisando dos pés a cabeça.
“Até mais do que Fernando costuma comentar...” falou por fim e pela
minha expressão totalmente envergonhada – juntamente com minhas maçãs do
rosto avermelhadas – ele riu. Olhei para Fernando e o garoto olhava
para os pés, tão tímido quanto eu. Sorri singelamente. Senhor Lewis
pigarreou.
“Bem, Fernando disse que estava indo te buscar não sei
onde, então tratei de fazer um almoço especial para você” ele depositou
uma mão em meu ombro direito e começou a me conduzir até a cozinha.
Novamente olhei o garoto de relance e este deu de ombros, rindo.
“Não
precisava se incomodar, tio Lewis” a cada hora que passava eu ficava
ainda mais envergonhada com a minha falta de vergonha por abusar de toda
aquela hospitalidade.
“É um prazer receber a filha do grande John
em minha humilde residência. Isso é o mínimo que posso fazer” tio Lewis
rebateu apreensivo, como se estivesse me dando um sermão.
“Exatamente
o que eu disse” Fernando entrou no clima do pai, me fazendo rolar os
olhos. “Espero que goste de purê de batata. É a minha especialidade”
Roncato pai deu uma piscadela.
“Adoro” sorri e vi tio Lewis rir satisfeito.
“Pai,
a Luinha vai passar uns tempos aqui em casa...” Fernando nem ao menos
pediu ou esperou eu ir a algum outro lugar para que ele pudesse pedir
permissão ao pai. Quis morrer.
“Isso vai ser ótimo!” o mais velho
nem ao menos perguntou o porquê, simplesmente começou a bater palmas. Se
eu fosse ele, me expulsaria dali por ser tão abusada. “Leve-a ao antigo
quarto de sua irmã” dirigiu-se ele a Fernando. “Sinta-se à vontade,
Luinha” sorriu abertamente, me fazendo relaxar meus músculos do ombro
gradativamente.
Então segui Fernando pelos outros cômodos da casa,
passando por um pequeno corredor com diversos quadros relativamente
abstratos pendurados. Mais tarde eu os observaria de perto...
Então
no fim daquele estreito corredor, Fernando abriu uma porta de madeira,
dando lugar a um pequeno quarto. Era perfeito. Uma cama, uma
escrivaninha, um guarda-roupa e uma janela para a vasta natureza daquele
sitio. Eu não precisava de mais nada.
Joguei minha mochila – que
por falar nisso já pesava em meus ombros tensos – na cama e fui observar
a vista da persiana. Um vento percorreu meus cabelos, fazendo-me
inspirar o máximo de ar que meus pulmões podiam agüentar. Os cachorros
brincavam livremente pelo pasto, correndo atrás de galinhas e eu podia
até escutar o senhor Lewis gritar com os mesmos da cozinha.
Olhei pelo meu ombro e vi Fernando colocando uma roupa de cama em cima da escrivaninha.
“Aqui tem toalha, lençol, essas coisas...” ele mexeu despreocupado nos cabelos, deixando-os ainda mais desarrumados.
“Muito obrigada Fernando... De verdade” sibilei gratificada.
“Pare
de agradecer, Luinha. Você é de casa agora” ele respondeu no mesmo tom
apreensivo do pai a minutos atrás, sorrindo logo após.
Olhei para
meus pés e o vi se aproximar, tirando uma mexa de cabelo que tampava meu
rosto e colocá-la atrás de minha orelha. Como a típica covarde que eu
era, não fui capaz de olhá-los nos olhos, entretanto pude sentir seus
lábios quentes tocarem minha testa.
“Vou te deixar um pouco a sós
com seu novo aposento. Daqui a pouco te chamo para o almoço...” o garoto
disse quase num sussurro e saiu do meu novo quarto logo após.
O
almoço foi de longe o mais engraçado da minha vida. Tio Lewis era o
maior palhaço e me fazia jorrar suco para fora da boca toda vez que me
fazia rir. Falou mal da família real britânica – chamando-os de
parasitas – do ridículo ideal-político bipolar dessa nova geração,
falamos de Lord Byron à Shakespeare – assunto que me interessou e me fez
falar mais que a língua – enfim, aquele tipo de conversa cultural e com
fundamentos.
Depois da refeição, Fernando e seu pai se ofereceram a
me mostrar toda a extensão do sitio, contando casos do mais novo em
cada canto do lugar, incluindo algumas que envolviam meu pai e eu. Um
fato que eu ao menos lembrava, certa vez fui me aventurar pelo lago
congelado pelo inverno rigoroso, patinando e fazendo piruetas sobre ele.
Até que pulei sobre uma parte não tão rígida e cai sobre a água
extremamente gélida e quem pulou imediatamente para me salvar, fora
Fernando – seguido de meu pai.
Enquanto o senhor Lewis contava,
Fernando observava a grama que pisávamos, os pássaros que voavam, os
patos que nadavam no lago, tudo para evitar o contato com meus olhos
indagadores sobre ele a cada palavra de seu pai, o qual falava
subjetivamente de uma paixão de infância que Fernando tivera por mim. Ao
invés de me sentir envergonhada, senti uma profunda curiosidade em
saber se era verdade.
E após longos minutos – que passaram
rápidos até demais – vimos o sol se pôr, dando lugar a um céu ofusco e
cheio de pontinhos brilhantes, então nos dirigimos à casa novamente. Tio
Lewis nos preparou um sanduíche rápido e enquanto comíamos, escutávamos
um vinil antigo do Louis Armstrong e a casos da juventude do pai de
Fernando. Eu estava vidrada em todas as histórias que o mais velho
contava sobre a segunda Grande Guerra, a qual participou, e sobre o que
fazia para não ficar maluco ou se matar como seus grandes companheiros
de batalhas fizeram.
Hora e outra eu podia sentir os olhos do
Roncato filho sobre mim, e quando via que o mesmo mudara o rumo de seu
olhar, tratava de observá-lo.
No final da conversa, recolhi os
pratos e os levei até a cozinha, lavando-os em seguida – e escutando
Fernando e o pai resmungarem e quase me baterem para tirar a louça de
minhas mãos.
“Anda, vamos dormir” Fernando me empurrava para fora
da cozinha e não escutava aos meus protestos. Aquilo era o mínimo que
eu podia fazer!
“Você também não facilita pra mim, né Fernando!” falei entre dentes assim que ele me empurrou para dentro do quarto.
“Ah, pelo amor de Deus, Lua! Você é nossa visita” o garoto disse com o cenho franzido numa expressão de braveza.
“Mas você disse que eu sou de casa” rebati e dei de ombros. Qual seria sua resposta agora?
“E você por acaso lavava os pratos na sua casa?” ele questionou, e ao invés de fazê-lo ficar sem graça, que ficou assim fui eu.
“Peste”
rolei os olhos e lhe dei um murro em seu braço, fazendo-o rir e se
encolher. Um silêncio se instalou no cômodo assim que nossas risadas
cessaram, então eu tratei de procurar algo para fixar os meus olhos.
“Boa
noite, Luinha” Fernando se aproximou do meu rosto, e enquanto eu
esperava por um simples beijo na bochecha, senti aqueles lábios
familiares tocarem o canto da minha boca e meu coração palpitou como
nunca havia feito antes.
Eu assustei. Assustei com os milhares de
sentimentos que formigaram em meu corpo no mesmo segundo. Não seria
capaz de descrevê-los.
Quis fugir.
Quis agarrá-lo.
Meu coração acelerava;
E depois parava bruscamente.
Fiquei sem ar;
E depois ofegante.
Era tudo certamente errado.
Estava tudo confusamente claro.
No
momento em que o garoto se afastou e olhou-me com ternura, tive coragem
de encará-lo de volta pela primeira vez em tempos e cheguei à uma
conclusão: Fernando estava colocando minha vida de cabeça para baixo.
E naquela noite, ele invadiu meus sonhos.
Invadiu meus sentimentos.
Invadiu meu coração...
*GALERA A WEB SE PASSA NO SÉCULO XX"
Continua..
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