domingo, 19 de maio de 2013

Web Doce Amor

                                  Capítulo 34





Já havia se passado um ano desde que Fernando partira para a guerra. E há quatro mês eu carregava nos braços a prova viva do que eu sentia por ele. Do que ele sentia por mim também.
Joanna era o bebê mais lindo do mundo. Tinha os maiores olhos que eu já vira na vida, os cabelos castanhos e enormes bochechas rosadinhas. Eu já havia tirado uma foto e enviado para Fernando. Eu queria estar perto para ver sua expressão quando a visse. Provavelmente choraria por mais três horas seguidas, se eu o conhecesse bem.

- Seu pai deve estar enlouquecendo lá em Dublin... – sussurrei para aquele pacotinho embrulhado em uma manta rosa em meus braços. Ela me encarava com aqueles olhos lindos, fazendo barulhinhos estranhos com a língua.
A última carta de Fernando havia sido curta e eu sabia por quê. Chay contara em uma carta à Mel que as coisas em Dublin ficavam cada vez mais difíceis. O acampamento deles havia sido atacado por terroristas irlandeses, e metade dos soldados que lá dormiam morreram. Chay e Fernando conseguiram escapar, mas Fernando sofrera alguns ferimentos graves na perna, dos quais ainda sofria com dores. E outro dia, o general havia obrigado Fernando a tirar informações de um soldado irlandês, e Chay escrevera na carta que Fernando nunca mais foi o mesmo depois daquele dia. Somente quando recebera a minha carta contando sobre o nascimento de Joanna foi que viu Fernando sorrir novamente pela primeira vez em semanas. Chay também dissera que o ambiente de guerra era insuportável, dormiam com os sons de tiros – se conseguissem dormir – e acordava com gritos vindos de todos os cantos. Suede, que nunca presenciara a morte de ninguém já havia visto no mínimo trinta mortes e que jamais seria o mesmo. Aquilo me deixava mais preocupada ainda em relação aos dois. A Fernando, principalmente. Ele tinha uma inocência única, via uma beleza inexplicável no mundo, e eu nem gostaria de pensar o que passou por sua mente quando viu alguém morrer – e pior, ao ter que matar alguém.
Ele não me contaria nada disso, provavelmente com medo da reação. Me senti um pouco triste por isso. Por mais difícil que fosse, eu queria que Fernando soubesse que podia desabafar para mim, que eu conseguiria lidar com o que ele tinha a dizer. Nem conseguia imaginar o que estava passando por sua cabeça, mas queria que ele pudesse confiar em mim para dizer o que sentia. E queria que a foto da nossa pequena Joanna lhe desse um pouco mais de segurança e calma naqueles momentos difíceis.

Doze meses que ele estava longe de mim, mas distancia nenhuma conseguia ser capaz de diminuir um pingo se quer dos meus sentimentos por Fernando.
Eu estava no sítio de seu pai, lugar onde passava a maior parte das minhas tardes. Minha rotina se resumia a ir para faculdade – enquanto Mary e Meredith cuidava de Joanna –, passar a tarde com tio Lewis e as maiorias das noites eu passava em claro cuidado da pequenina. Não que ela desse muito trabalho, mas eu era um pouco paranoica e acordava de cinco e cinco minutos para ver se ela estava bem. E nessas noites, eu havia adquirido uma certa mania peculiar. Eu embrulhava Joanna em um cobertor e sentava à beirada da janela do meu quarto, a mesma janela em que me sentava para escutar as serenatas que Fernando me passava. Observava as estrelas enquanto contava a Joanna casos sobre seu pai, sobre como ele era a pessoa mais maravilhosa que eu já conhecera, e sobre nossos momentos juntos. Aquilo parecia acalmá-la e entretê-la, já que ela me encarava com olhos curiosamente calmos. Ela já não conseguia dormir sem escutar minhas histórias. Eu gostava de relembrar de tudo que havia vivido com Fernando, minhas memórias ainda eram frescas em minha mente, e aquilo fazia com que eu o sentisse mais perto de nós.

Aquele dia fora especialmente peculiar. Enquanto eu voltava da faculdade e passava pelo centro da cidade, os pedestres estavam mais agitados que o normal. Riam, se abraçavam, e eu podia jurar que ouvira fogos de artifício. O transito estava particularmente caótico, e eu nunca havia visto Bolton tão tumultuada.
Movida pela curiosidade, saltei do carro dirigido por Noel e corri a passos largos até uma multidão concentrada em frente uma loja de eletrodomésticos, com dezenas de televisões na vitrine. Meu coração batia forte contra o peito, uma sensação confusa me atingia em cheio. Eu sabia que eram boas noticias. Tinha de ser boas notícias.

- Plantão News. O Primeiro-Ministro Harold Wilson anuncia oficialmente o fim da Guerra Eire. O exército britânico foi capaz de aprisionar o ditador Ramsay Baldwin, que está sendo mandado para a prisão de Brixton, em Londres.
Eu já não consegui ouvir mais nada além da agitação dentro de mim. A guerra havia acabado. Tão repentinamente quanto começara. Eu ria histericamente, gritava, chorava, abraçava desconhecidos ao meu redor, pulava, rodopiava. Ele estava voltando! Fernando estava voltando para casa!
A primeira reação que tive foi ordenar que Noel me levasse até o sítio. Eu sabia que há esse ponto tio Lewis já havia escutado a notícia, mas eu precisava vê-lo, precisava compartilhar aquela alegria que explodiria em mim a qualquer momento.
Quando enfim cheguei ao meu destino, corri em direção ao Senhor Roncato, que já me aguardava na varanda da casa. Sem dizer uma palavra, abraçamo-nos e deixamos que as lágrimas caíssem, num ato silencioso de felicidade.
- Ele está voltando... – Lewis sussurrou em meu ouvido com a voz trêmula. – Meu garoto está voltando...
Apertei-o ainda mais com os braços, já tendo a imagem de Fernando em minha cabeça.
Ele descendo do navio. Seus olhos procurando pelos meus. Seu sorriso se abrindo ao me ver. Seu corpo correndo contra o meu. Seus braços ao redor da minha cintura. Seus lábios matando toda a saudade reprimida. Um arrepio passou pela minha espinha só de imaginar que eu o veria novamente em questão de dias. A felicidade era indescritível.

Bolton estava extasiada. Os fogos não pararam nem por um segundo, e eu e os meus amigos compartilhávamos desse êxtase na praça principal da cidade. Todos os moradores haviam lá se reunido para comemorar, e eu me permiti colocar um pouco de cerveja pra dentro, depois de mais de um ano sem beber. O líquido nunca me pareceu tão revigorante, e depois de apenas um copo eu já sentia minhas pernas bambearem de uma forma confortável. Meu rosto já doía de tanto sorrir, mas quem se importava? Eles estavam voltando, isso era o que importava. Mel também partilhava da minha felicidade, porque só ela sabia o que eu estava sentindo. Trocávamos olhares cumplices que transbordavam alegria, e nos abraçávamos de minuto em minuto.
Quando finalmente o cansaço pareceu me abater, resolvi voltar para casa. Encontrei mamãe e Joanna deitadas no sofá da sala, enquanto um programa qualquer na televisão ainda dava notícias sobre o fim da guerra. Acordei Mary delicadamente e ela apenas me lançou um sorriso cúmplice, entregando-me Joanna. Subi com a pequenina para o quarto e, mesmo que ela estivesse dormindo, sentei na cadeira em frente a janela e passei a encarar o portão, onde o carro amarelo de Fernando costumava parar. Quase pude vê-lo de pé ali, cantando Elvis Presley com sua voz maravilhosa. Acariciei os cabelos de Jo, e ela se remexeu preguiçosamente em meus braços; beijei suas bochechas com sutileza.
- O papai está voltando para nós.

Trinta dias depois, lá estava eu para o grande dia. O porto de Liverpool estava abarrotado de esposas chorosas e pais orgulhosos. Tio Lewis estava ao meu lado, com uma Joanna inquieta em seu colo, enquanto Melzinha mantinha seu braço entrelaçado no meu. Arthur e Micael estavam atrás de nós, um mais apreensivo que o outro.
Minhas mãos suavam incessantemente, e minhas pernas tremiam de nervosismo. Meu coração só faltava saltar pela boca enquanto eu via mais um navio se aproximar. Aquele seria o quarto e último navio a ancorar no porto. Aquele seria o navio o qual Fernando e Chay desceriam para nos reencontrar. Todos nós trocávamos olhares ansiosos, sorrisos nervosos, pois todos nós estávamos na expectativa para vê-los novamente. A imagem de Fernando vindo de encontro a mim era reconfortante e ao mesmo tempo me deixava cada vez mais impaciente enquanto o navio aproximava-se lentamente da costa. Tudo o que eu conseguia pensar era em seus olhos, aqueles olhos que diziam tanto pra mim sem que ele proferisse uma palavra sequer. Aqueles olhos que me diriam que finalmente tudo ficaria bem. Não sabia dizer ao certo quanto tempo o navio demorou a chegar, um minuto, meia hora, talvez dias, mas quando ele finalmente atracou, achei que não conseguiria ficar de pé nem mais um segundo sequer.
Soldados uniformizados começaram a descer pelas escadas postas na beirada do navio, e eu nem ao menos conseguia ouvir a barulheira ao meu redor. Tudo o que eu conseguia escutar eram as batidas ensurdecedoras do meu coração. A qualquer momento.

Finalmente vi o semblante de Chay aparecer, e nem ao menos esperei, puxei o braço de Mel e nós duas corremos em direção à escada por onde ele descia. Meu coração batia cada vez mais frenético.
Suede terminou de descer a escada apressadamente e tratou de abraçar Mel daquele jeito que eu sabia que seria abraçada a qualquer momento. Já podia sentir os braços de Fernando me envolverem.
Voltei a encarar a escada, vendo dezenas de soldados descerem com sorrisos enormes nos lábios, mal podendo esperar para encontrar a pessoa amada que haviam deixado para trás. Um por um foram descendo, e eu procurava o rosto de Fernando em todos. Minha garganta estava seca de ansiedade, minhas mãos pingavam e meu coração saltaria pela boca em qualquer instante.
Meus olhos se moviam rapidamente à procura, e eu já estava prestes a subir aquela escada para ir atrás de Fernando eu mesma e arrastá-lo o mais depressa possível daquele navio. Por que ele ainda não estava ali ao meu lado?
Minhas pernas bambearam e tudo ficou silencioso à minha volta. Eu não escutava nada. Absolutamente nada. Apenas o som do meu coração acelerado contra as minhas costelas.
Virei minha cabeça alguns centímetros, apenas para encontrar os olhos de Chay. Ele ainda abraçava Mel firmemente, mas seus olhos estavam fixos nos meus. Aqueles olhos que foram meus cumplices durante tanto tempo. Aqueles olhos cheios de alegria e espontaneidade, mas que agora estavam regados de tristeza. Uma tristeza doentia. Uma tristeza que eu nunca havia visto antes. Uma tristeza que corroeu tudo, absolutamente tudo dentro de mim.
Seus olhos continuaram compenetrados nos meus por alguns instantes.
Silêncio.
Meu melhor amigo balançou a cabeça sutilmente, deixando uma lágrima escapar de seus olhos mórbidos.
E então minhas pernas finalmente cederam.



Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Vamos comentar LuCáticas?