Capítulo 34
Já havia se passado um ano desde que Fernando partira para a guerra. E
há quatro mês eu carregava nos braços a prova viva do que eu sentia por
ele. Do que ele sentia por mim também.
Joanna era o bebê mais lindo
do mundo. Tinha os maiores olhos que eu já vira na vida, os cabelos
castanhos e enormes bochechas rosadinhas. Eu já havia tirado uma foto e
enviado para Fernando. Eu queria estar perto para ver sua expressão
quando a visse. Provavelmente choraria por mais três horas seguidas, se
eu o conhecesse bem.
- Seu pai deve estar enlouquecendo lá em
Dublin... – sussurrei para aquele pacotinho embrulhado em uma manta rosa
em meus braços. Ela me encarava com aqueles olhos lindos, fazendo
barulhinhos estranhos com a língua.
A última carta de Fernando havia
sido curta e eu sabia por quê. Chay contara em uma carta à Mel que as
coisas em Dublin ficavam cada vez mais difíceis. O acampamento deles
havia sido atacado por terroristas irlandeses, e metade dos soldados que
lá dormiam morreram. Chay e Fernando conseguiram escapar, mas Fernando
sofrera alguns ferimentos graves na perna, dos quais ainda sofria com
dores. E outro dia, o general havia obrigado Fernando a tirar
informações de um soldado irlandês, e Chay escrevera na carta que
Fernando nunca mais foi o mesmo depois daquele dia. Somente quando
recebera a minha carta contando sobre o nascimento de Joanna foi que viu
Fernando sorrir novamente pela primeira vez em semanas. Chay também
dissera que o ambiente de guerra era insuportável, dormiam com os sons
de tiros – se conseguissem dormir – e acordava com gritos vindos de
todos os cantos. Suede, que nunca presenciara a morte de ninguém já
havia visto no mínimo trinta mortes e que jamais seria o mesmo. Aquilo
me deixava mais preocupada ainda em relação aos dois. A Fernando,
principalmente. Ele tinha uma inocência única, via uma beleza
inexplicável no mundo, e eu nem gostaria de pensar o que passou por sua
mente quando viu alguém morrer – e pior, ao ter que matar alguém.
Ele
não me contaria nada disso, provavelmente com medo da reação. Me senti
um pouco triste por isso. Por mais difícil que fosse, eu queria que
Fernando soubesse que podia desabafar para mim, que eu conseguiria lidar
com o que ele tinha a dizer. Nem conseguia imaginar o que estava
passando por sua cabeça, mas queria que ele pudesse confiar em mim para
dizer o que sentia. E queria que a foto da nossa pequena Joanna lhe
desse um pouco mais de segurança e calma naqueles momentos difíceis.
Doze
meses que ele estava longe de mim, mas distancia nenhuma conseguia ser
capaz de diminuir um pingo se quer dos meus sentimentos por Fernando.
Eu
estava no sítio de seu pai, lugar onde passava a maior parte das minhas
tardes. Minha rotina se resumia a ir para faculdade – enquanto Mary e
Meredith cuidava de Joanna –, passar a tarde com tio Lewis e as maiorias
das noites eu passava em claro cuidado da pequenina. Não que ela desse
muito trabalho, mas eu era um pouco paranoica e acordava de cinco e
cinco minutos para ver se ela estava bem. E nessas noites, eu havia
adquirido uma certa mania peculiar. Eu embrulhava Joanna em um cobertor e
sentava à beirada da janela do meu quarto, a mesma janela em que me
sentava para escutar as serenatas que Fernando me passava. Observava as
estrelas enquanto contava a Joanna casos sobre seu pai, sobre como ele
era a pessoa mais maravilhosa que eu já conhecera, e sobre nossos
momentos juntos. Aquilo parecia acalmá-la e entretê-la, já que ela me
encarava com olhos curiosamente calmos. Ela já não conseguia dormir sem
escutar minhas histórias. Eu gostava de relembrar de tudo que havia
vivido com Fernando, minhas memórias ainda eram frescas em minha mente, e
aquilo fazia com que eu o sentisse mais perto de nós.
Aquele dia
fora especialmente peculiar. Enquanto eu voltava da faculdade e passava
pelo centro da cidade, os pedestres estavam mais agitados que o normal.
Riam, se abraçavam, e eu podia jurar que ouvira fogos de artifício. O
transito estava particularmente caótico, e eu nunca havia visto Bolton
tão tumultuada.
Movida pela curiosidade, saltei do carro dirigido
por Noel e corri a passos largos até uma multidão concentrada em frente
uma loja de eletrodomésticos, com dezenas de televisões na vitrine. Meu
coração batia forte contra o peito, uma sensação confusa me atingia em
cheio. Eu sabia que eram boas noticias. Tinha de ser boas notícias.
-
Plantão News. O Primeiro-Ministro Harold Wilson anuncia oficialmente o
fim da Guerra Eire. O exército britânico foi capaz de aprisionar o
ditador Ramsay Baldwin, que está sendo mandado para a prisão de Brixton,
em Londres.
Eu já não consegui ouvir mais nada além da agitação
dentro de mim. A guerra havia acabado. Tão repentinamente quanto
começara. Eu ria histericamente, gritava, chorava, abraçava
desconhecidos ao meu redor, pulava, rodopiava. Ele estava voltando!
Fernando estava voltando para casa!
A primeira reação que tive foi
ordenar que Noel me levasse até o sítio. Eu sabia que há esse ponto tio
Lewis já havia escutado a notícia, mas eu precisava vê-lo, precisava
compartilhar aquela alegria que explodiria em mim a qualquer momento.
Quando
enfim cheguei ao meu destino, corri em direção ao Senhor Roncato, que
já me aguardava na varanda da casa. Sem dizer uma palavra, abraçamo-nos e
deixamos que as lágrimas caíssem, num ato silencioso de felicidade.
- Ele está voltando... – Lewis sussurrou em meu ouvido com a voz trêmula. – Meu garoto está voltando...
Apertei-o ainda mais com os braços, já tendo a imagem de Fernando em minha cabeça.
Ele
descendo do navio. Seus olhos procurando pelos meus. Seu sorriso se
abrindo ao me ver. Seu corpo correndo contra o meu. Seus braços ao redor
da minha cintura. Seus lábios matando toda a saudade reprimida. Um
arrepio passou pela minha espinha só de imaginar que eu o veria
novamente em questão de dias. A felicidade era indescritível.
Bolton
estava extasiada. Os fogos não pararam nem por um segundo, e eu e os
meus amigos compartilhávamos desse êxtase na praça principal da cidade.
Todos os moradores haviam lá se reunido para comemorar, e eu me permiti
colocar um pouco de cerveja pra dentro, depois de mais de um ano sem
beber. O líquido nunca me pareceu tão revigorante, e depois de apenas um
copo eu já sentia minhas pernas bambearem de uma forma confortável. Meu
rosto já doía de tanto sorrir, mas quem se importava? Eles estavam
voltando, isso era o que importava. Mel também partilhava da minha
felicidade, porque só ela sabia o que eu estava sentindo. Trocávamos
olhares cumplices que transbordavam alegria, e nos abraçávamos de minuto
em minuto.
Quando finalmente o cansaço pareceu me abater, resolvi
voltar para casa. Encontrei mamãe e Joanna deitadas no sofá da sala,
enquanto um programa qualquer na televisão ainda dava notícias sobre o
fim da guerra. Acordei Mary delicadamente e ela apenas me lançou um
sorriso cúmplice, entregando-me Joanna. Subi com a pequenina para o
quarto e, mesmo que ela estivesse dormindo, sentei na cadeira em frente a
janela e passei a encarar o portão, onde o carro amarelo de Fernando
costumava parar. Quase pude vê-lo de pé ali, cantando Elvis Presley com
sua voz maravilhosa. Acariciei os cabelos de Jo, e ela se remexeu
preguiçosamente em meus braços; beijei suas bochechas com sutileza.
- O papai está voltando para nós.
Trinta
dias depois, lá estava eu para o grande dia. O porto de Liverpool
estava abarrotado de esposas chorosas e pais orgulhosos. Tio Lewis
estava ao meu lado, com uma Joanna inquieta em seu colo, enquanto
Melzinha mantinha seu braço entrelaçado no meu. Arthur e Micael estavam
atrás de nós, um mais apreensivo que o outro.
Minhas mãos suavam
incessantemente, e minhas pernas tremiam de nervosismo. Meu coração só
faltava saltar pela boca enquanto eu via mais um navio se aproximar.
Aquele seria o quarto e último navio a ancorar no porto. Aquele seria o
navio o qual Fernando e Chay desceriam para nos reencontrar. Todos nós
trocávamos olhares ansiosos, sorrisos nervosos, pois todos nós estávamos
na expectativa para vê-los novamente. A imagem de Fernando vindo de
encontro a mim era reconfortante e ao mesmo tempo me deixava cada vez
mais impaciente enquanto o navio aproximava-se lentamente da costa. Tudo
o que eu conseguia pensar era em seus olhos, aqueles olhos que diziam
tanto pra mim sem que ele proferisse uma palavra sequer. Aqueles olhos
que me diriam que finalmente tudo ficaria bem. Não sabia dizer ao certo
quanto tempo o navio demorou a chegar, um minuto, meia hora, talvez
dias, mas quando ele finalmente atracou, achei que não conseguiria ficar
de pé nem mais um segundo sequer.
Soldados uniformizados começaram a
descer pelas escadas postas na beirada do navio, e eu nem ao menos
conseguia ouvir a barulheira ao meu redor. Tudo o que eu conseguia
escutar eram as batidas ensurdecedoras do meu coração. A qualquer
momento.
Finalmente vi o semblante de Chay aparecer, e nem ao
menos esperei, puxei o braço de Mel e nós duas corremos em direção à
escada por onde ele descia. Meu coração batia cada vez mais frenético.
Suede
terminou de descer a escada apressadamente e tratou de abraçar Mel
daquele jeito que eu sabia que seria abraçada a qualquer momento. Já
podia sentir os braços de Fernando me envolverem.
Voltei a encarar a
escada, vendo dezenas de soldados descerem com sorrisos enormes nos
lábios, mal podendo esperar para encontrar a pessoa amada que haviam
deixado para trás. Um por um foram descendo, e eu procurava o rosto de
Fernando em todos. Minha garganta estava seca de ansiedade, minhas mãos
pingavam e meu coração saltaria pela boca em qualquer instante.
Meus
olhos se moviam rapidamente à procura, e eu já estava prestes a subir
aquela escada para ir atrás de Fernando eu mesma e arrastá-lo o mais
depressa possível daquele navio. Por que ele ainda não estava ali ao meu
lado?
Minhas pernas bambearam e tudo ficou silencioso à minha
volta. Eu não escutava nada. Absolutamente nada. Apenas o som do meu
coração acelerado contra as minhas costelas.
Virei minha cabeça
alguns centímetros, apenas para encontrar os olhos de Chay. Ele ainda
abraçava Mel firmemente, mas seus olhos estavam fixos nos meus. Aqueles
olhos que foram meus cumplices durante tanto tempo. Aqueles olhos cheios
de alegria e espontaneidade, mas que agora estavam regados de tristeza.
Uma tristeza doentia. Uma tristeza que eu nunca havia visto antes. Uma
tristeza que corroeu tudo, absolutamente tudo dentro de mim.
Seus olhos continuaram compenetrados nos meus por alguns instantes.
Silêncio.
Meu melhor amigo balançou a cabeça sutilmente, deixando uma lágrima escapar de seus olhos mórbidos.
E então minhas pernas finalmente cederam.
Continua...
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