quarta-feira, 15 de maio de 2013

Web Doce Amor

                                 Capítulo 30





Eu andava por Bolton sem ter uma direção exata. Eu não sabia para onde ir. Não sabia o que fazer. Não conseguia ver nada, pensar em nada, sentir nada. Era tudo um enorme e inacabável vazio dentro de mim. Era como se... Eu tivesse deixado de existir, e estivesse apenas vagando pelo nada. Claro que aquilo parecia muito melodramático, mas eu não conseguia ver nada com clareza. Não conseguia enxergar uma luz no fim daquele túnel. E estava tudo tão escuro... Eu precisava de algo que me ajudasse a enxergar as coisas com mais clareza. Mas eu não sabia do que precisava. Não sabia o que queria. Quando dei por mim, estava na Rua Lafayette, em frente ao meu prédio. Com movimentos completamente automáticos, adentrei a portaria, subi as escadas até o terceiro andar e abri meu apartamento.
Estava tudo num silêncio incrível... Quase assustador. Chay não estava mais ali. Nem a sua bagunça. Quando fui até seu quarto, o azul, suas coisas não estavam mais lá. Quero dizer, ainda tinha alguns livros na cômoda, algumas poucas roupas no armário aberto e outras jogadas na cama. Mas a sua presença, o toque Suede que deixava a casa mais alegre, se fora. Ele provavelmente partira enquanto eu estava com Fernando. E eu nem ao menos tive a oportunidade de me despedir...
Sentei em sua cama, sem pensar em absolutamente nada. Eu estava definitivamente vazia. Anestesiada.
Até que uma ânsia enorme me atacou em cheio, e me vi correndo até o banheiro em frente ao quarto. Talvez meu nervosismo e todos os sentimentos que eu deveria estar tendo naquele momento estivessem se manifestando naquele enjoo e mal-estar. Depois de liberar todo o desconforto, enxaguei minha boca e meu rosto. Quando me olhei no espelho, levei um susto. Eu não conseguia me reconhecer. As olheiras profundas e escuras ofuscavam completamente o brilho que meus olhos sempre tiveram. O rosto pálido e a boca esbranquiçada me davam a impressão de estar doente. Mas eu realmente estava. Podia não estar fisicamente, mas minha cabeça estava completamente debilitada.

O que eu farei agora?
Era tudo o que eu conseguia pensar. Eu queria voltar para o comitê, mas depois não queria mais. Queria ir para Cambridge, mas segundos depois a ideia parecia absurda. Queria desaparecer, mas depois a imagem de Fernando vinha em minha mente.
Ele me prometera que tudo ficaria bem. Eu confiava nele. Eu sabia que tudo ficaria bem. Eu sabia que a luz no final do túnel apareceria eventualmente; por mais que demorasse, ela apareceria. Eu não iria desistir de maneira alguma.

Peguei alguns papéis dobrados no bolso do meu moletom e os abri. A caligrafia de Fernando me fazia imaginá-lo escrevendo aquilo e, quando eu fechava os olhos, podia vê-lo bem na minha frente, sorrindo. Não me contive em sorrir também.
Comecei a ler a carta, pela terceira vez naquele dia, e podia até escutar a voz de Fernando em meu ouvido, sussurrando todas as palavras que continham naquele pedaço de papel. Enquanto lia calmamente, podia sentir seus braços envolvendo minha cintura, podia sentir o cheiro maravilhoso que exalava de seu pescoço. Podia sentir meu coração se acalmar, e o vazio dentro de mim ser preenchido por algo que eu não conseguia distinguir.
Eu imaginava onde ele já estava. Provavelmente a alguns quilômetros de Bolton, talvez em Manchester. Em que porto será que ele embarcaria? Provavelmente em Liverpool. Será que seus ferimentos ainda o incomodavam?
Eu já queria noticias. Mesmo ele tendo partido em poucas horas, eu já precisava saber como ele estava e onde estava. Queria outra carta, queria poder senti-lo novamente. Mas eu sabia que demoraria. Sabia que teria de esperar uns bons bocados. Enquanto isso, acalmaria aquela tempestade dentro de mim com as palavras lindas daquela carta que eu tinha.

Eu não tinha a mínima ideia do que eu faria agora. Mas de uma coisa eu sabia: eu não podia ficar naquele apartamento.
“Arruma essa mesinha aí...” Fernando pediu com um nítido esforço na voz. A cor vermelha tomava conta de seu rosto pela força que fazia ao carregar minha TV. Arrumei o suporte de madeira que estava no meio da parede vermelha, e então Fernando colocou o aparelho ali com um suspiro de alívio.
“Sabia que aboliram a escravidão há séculos?” falou ofegante enquanto apoiava as mãos nos joelhos.
“Não seja frangote, vai!” empurrei-o levemente, aos risos.
No momento seguinte, John entrou no apartamento do mesmo modo que Fernando (e com caixas cobrindo até seu rosto).
“Agora virei seu escravo?” falou ao depositar as caixas no chão. Fernando cerrou os olhos, como se me desse um sermão por eles.
“Vocês são uns frescos...” rolei os olhos e me joguei no chão, abrindo cada uma das caixas em seguida.
Um mar de memórias e momentos passou com ondas violentas sobre mim, relembrando-me e atingindo-me com nostalgia. Bonecas da minha infância, retratos em tom amarronzados (tirados com máquinas dos anos trinta).
“Oh, pai!” chamei-o com a mão. “Olhe só essa foto!” falei com entusiasmo, estendendo a tal fotografia. Ela era minha favorita. John usava um boné qualquer, sua barba estava malfeita, conjunta com seu sorriso enorme e típico. Eu, no entanto, beirava meus quatro anos de idade. Usava um vestido floral e uma tiara nos cabelos; também tinha o dedo indicador na boca, dando-me um tom ainda mais angelical e infantil. Estava no colo de John, mas o que mais me chamava a atenção era o fato de Mary estar ao fundo, como se estivesse aproximando de nós, com a boca aberta (provavelmente gritando algo).
“Mary com seu humor fantástico de sempre...” papai exclamou com ironia, fazendo Fernando - que havia se aproximado para também ver a foto - e eu rir. John suspirou e se abaixou para mexer na caixa. E como muitas vezes, peguei-me imaginando as razões pelas quais ele se casara com Mary. Desde que eu me lembro, ela sempre foi ansiosa, impaciente e autoritária. Que ser humano aguentaria outro assim? Não podia ser por dinheiro, já que John era um dos mais afortunados economicamente da cidade.
“Por que vocês se casaram, pai? Quero dizer, por que você se casou com ela?” me atrevi a perguntar. John novamente suspirou pesadamente. Analisava uma foto de nós três, uma das únicas em que Mary sorria.
“Não escolhemos a quem amar, Lua...” balbuciou quase num sussurro, quase como um suspiro pesaroso. “O amor nasce nas, das e pelas pessoas mais inusitadas e inimagináveis...” completou pensativo, analisando outras fotografias.

Apesar dos momentos maravilhosos que eu tive ali, o medo de me prender a eles era enorme. De alguma maneira, eu precisava seguir em frente. E se eu ficasse ali, nunca me desprenderia das memórias e não seria capaz de ser feliz novamente.
“Po-pode entrar...” gaguejei, me sentei no colchão e tirei o robe, ficando apenas de sutiã e calcinha. Eu estava a mil. Minha respiração estava falha.
Vi a porta se abrir em câmera lenta, juro que vi. Nessa imagem vagarosa, vi Fernando entrar somente de samba-canção e uma toalha em mãos, secando os cabelos com ela. Seus olhos me encontraram e no momento seguinte a toalha caiu de suas mãos lentamente até o chão. Sua boca se entreabriu e seus olhos percorreram meu corpo seminu com cautela e confusão. Havia algo de errado?
Resolvi então me levantar e ir em direção a Fernando, sem pressa. Nossos olhos estavam compenetrados um no outro; eu sentia meu peito subir e descer rapidamente; meu coração parecia querer saltar de dentro de mim.
Quando a distância entre nós era mínima, envolvi sua nuca úmida com meus dedos trêmulos e o puxei, de modo que nossos lábios se encontrassem pela milésima vez. Nossos beijos possuíam uma sincronia perfeita, como se minha boca fosse moldada para ser encaixada na dele. As mãos de Fernando se posicionaram firmemente em minha cintura, levando meu corpo a se chocar com o dele. Gemi vagamente ao sentir o peitoral ligeiramente molhado contra meu colo descoberto e apertei um de seus braços fortes com veemência.
Pulei em seu colo de surpresa e senti as mãos do garoto apertarem as minhas coxas, de modo a me segurar; elas passeavam por toda região, enquanto eu puxava seus cabelos com força e sem a mínima dó.
Eu estava completamente entorpecida com o cheiro de sabonete que sua pele exalava. Minha mente estava vazia e eu agradecia por isso.
Parti nosso beijo, segurando o rosto de Fernando entre as minhas mãos. Seus olhos estavam absortos de desejo e me encaravam como se pedissem por mais. Eles eram tão maravilhosos...

Então, vi o garoto se mexer e começar a andar vagarosamente até a cama improvisada. Com delicadeza ele me deitou no colchão e se deitou por cima de mim. Seus olhos continuavam cravados nos meus como se nada pudesse partir o contato entre eles. Eu, no entanto, o parti no momento em que o puxei novamente para um beijo. Fernando se encaixou entre as minhas pernas e levou uma de suas mãos até minha coxa, enquanto a outra se apoiava no colchão, de modo a não deixar seu peso cair sobre mim.
Nosso beijo ia se intensificando a cada segundo e eu não podia mais controlar o meu desejo. Eu queria Fernando. Eu precisava de Fernando mais do que tudo naquele momento. O garoto desceu seus beijos para o meu pescoço, fazendo-me cravar as unhas em suas costas em resposta. Sua língua ia me enlouquecendo à medida que descia do pescoço até meu peito. Desceu para a minha barriga, dando pequenos beijos espalhados por toda a região.
Empurrei o garoto e me sentei em seu colo, tirando meu sutiã em seguida. Ele ficou extasiado e estático ao mesmo tempo. Olhava para o meu corpo com atenção, no mesmo tempo em que suas mãos passeavam por minhas costas totalmente descobertas.
“Você é linda...” sua voz saiu falha, ao contrário de seus olhos que estavam certeiros, analisando cada parte do meu corpo.
Minhas bochechas não tinham como estar mais coradas. Beijei-o novamente, não só com a intenção de fazê-lo parar de me encarar, mas também para poder sentir seu gosto novamente.
Eu não sabia se percorria suas costas perfeitamente esculpidas ou vagava por seus braços contraídos.
Então, Fernando novamente me deitou. Fazia movimentos insinuantes sobre mim, e eu podia sentir todo o êxtase e excitação vindos de todas as partes de seu corpo. Seus dedos agora percorriam meu colo enquanto os meus desceram até sua cintura, apertando-o ainda mais contra mim.
Minha respiração estava totalmente descoordenada, mas eu não queria parar para respirar; isso me parecia superficial naquele momento.
“Tire sua samba-canção” falei entre nosso beijo, mais ofegante impossível. Fernando me encarou assustado, seus olhos muito abertos e sua boca deixando escapar os suspiros de desejo e confusão.
“O-o quê?” balbuciou com dificuldade. Suspirei profundamente e sussurrei bem perto de seu ouvido:
“Eu te quero, Fernando... Te quero agora”

Por alguns longos segundos, o garoto apenas me encarou. O quarto que antes estava preenchido por nossos suspiros, agora deu lugar a um silêncio profundo, não absoluto apenas por nossas respirações descompassadas.
Fernando encostou sua testa na minha e fechou os olhos. Não tinha a mínima ideia do que se passava em sua mente e mesmo se soubesse, não entenderia. Eu mal conseguia coordenar os meus pensamentos... Em um ato inusitado, o garoto desceu suas mãos até a única peça de roupa que possuía. Observei-o tirá-la lentamente, gravando cada detalhe de seu corpo. Quando terminou, voltou a me encarar. Seus olhos transpareciam toda a segurança que eu poderia precisar. Transpareciam tudo o que o garoto sentia. Era um olhar totalmente novo.
Levei minha mão até seus lábios e os contornei com a ponta dos meus dedos. Subi para seu nariz; depois para suas sobrancelhas.
“Você é maravilhoso” falei com certeza. Um sorriso singelo e perfeito brotou em seus lábios. “Me faça sua. Agora”

Mary precisava de mim. Eu precisava dela. Por que razão ficaríamos separadas? Eu sabia que ela me aceitaria de volta em casa e, apesar de lá ter o trilhão a mais de memórias, pelo menos teríamos uma à outra para nos apoiar. Eu precisava de todo o apoio do mundo naquele momento, e sabia que ela também.
E como eu já havia previsto, a mesa que – supostamente – era para ser uma mesa de jantar, estava cheia de cartas e cinzeiros.
Os garotos gritavam histericamente no jogo, um acusando o outro de trapacearia, batiam na mesa e eu e Mel apenas riamos de cada cena. Micael era o mais estressadinho. Nunca conseguia chegar até o fim de qualquer partida sem apelar e gritar com todo mundo.
Nós – Melzinha e eu – conseguimos no final convencê-los de largar as cartas e se juntarem a nós nos pufes, para que pudéssemos conversar sobre nada e brincar de qualquer coisa inútil.
Mel deu a ideia de jogarmos a brincadeira dos ‘Dez Anos’. Cada um tinha que dizer como se via daqui a dez anos. Coisa simples, mas gostosa de fazer.

“Bom, eu me vejo fazendo turnês pelo mundo e ficando com uma garota a cada lugar que eu parasse...” Arthur disse com uma cara de pensativo, acendendo um Marlboro em seguida.
“Eu... Bom, eu não sei, cara. Quero estar bêbado e com duas gêmeas no meu colo.” Ah, sim. O fetiche de Borges, tinha até me esquecido.
“Eu quero ter um ateliê famoso em Londres e estar casada com o Chay” Melzinha disse com um sorriso enorme e deu um beijo na bochecha do namorado em seguida. Todos nós soltamos sons como ‘Oun’, fazendo com que os dois se envergonhassem. Agora todos olhavam atentamente para Fernando, esperando sua resposta.
“Não consigo me ver daqui a dez anos...” ele disse após alguns segundos pensando. Meu estômago revirou, e todos continuaram vidrados, esperando por uma explicação. “Bicho, pensa comigo: Eu não tenho muitas perspectivas. Não tenho dinheiro pra faculdade nem nada. O máximo que pode acontecer comigo é eu continuar com o bar do meu pai...” ele continuou naturalmente, sem se importar com nossas caras de espanto.
“Chapa, já te falei que você pode conseguir bolsa!” Arthur falou após soltar a fumaça do cigarro.
“E daí se eu conseguir? O que eu iria fazer? Odeio escola, você sabe. Não gosto de fazer nada, só de tocar. Quais são minhas habilidades?” ele disse como se fosse óbvio. Preferi ficar calada.
“Céus, como você é pessimista!” Melzinha fez uma careta.
“Ah, tanto faz. Não gosto desses assuntos. Passo pro Chay” Fernando disse meio irritado, acendendo um cigarro em seguida.

O Chay disse alguma coisa que eu não dei atenção, envolveria Mel provavelmente. Na minha hora eu disse o que todos sabiam, fazer faculdade de literatura e publicar livros. Todos continuaram bebendo e conversando coisas sem nexo, até que levantei e fui para a cozinha. Algo me incomodava.
Seria egoísmo demais da minha parte admitir que queria escutar Fernando dizendo que queria estar comigo daqui a dez anos como Mel e Chay? Será que ele não via futuro no nosso relacionamento ou talvez pensasse que era algo passageiro?
Neguei com a cabeça os meus próprios pensamentos e acabei com o resto de uísque que tinha no meu copo; abri a geladeira e peguei o uísque, despejando o líquido no meu copo.
Eu com certeza era egoísta. O quão importante eu pensava que era para ter pensamentos assim?
“Oi” escutei sua voz bem próxima do meu ouvido e seus braços envolverem minha cintura.
“Oi...” falei timidamente, tomando um gole da bebida no meu copo.
“Está tudo bem?” Fernando perguntou, ainda naquele tom doce e suave. Respondi através de um aceno com a cabeça. “Tem certeza?” insistiu. Ele lia meus pensamentos ou algo assim?
“Aham...” confirmei um pouco incerta. O garoto me virou com sutileza, de modo que eu o encarasse. Eu o fiz, tentando não demonstrar meus pensamentos através do meu olhar.
“Você pode não acreditar, mas eu te conheço...” ele disse com uma feição convencida e um pequeno sorriso.
Congelei. O pior: eu sabia que ele conhecia...
“É só que... Ah, nada, besteira minha!” sorri levemente e o abracei pela cintura, afundando meu rosto em seu pescoço. Não usava perfume, mas seu cheiro natural exalava pelos poros. Seria estranho dizer que era melhor que qualquer perfume francês?
“Posso te contar um segredo?” sussurrou.
“Claro...”
“Na brincadeira dos dez anos, eu menti...” ele começou a dizer calmamente, e eu já senti tudo dentro de mim se agitar. “Eu consigo me ver daqui a dez anos...”
“Ah é?” gaguejei um pouco, sem desgrudar minha face de seu pescoço.
“Aham... E nele eu estou deitado na grama com uma garota linda nos meus braços... Ela está mais velha, obviamente, mas ainda mais maravilhosa...” ele continuou, dando leves beijos em minha orelha.
“É verdade?” passei-me por desentendida, a fim de que ele falasse mais. Massagens no ego eram ótimas. Ainda mais vindas do garoto que você mais gostava.
“É sim. Na verdade eu não me vejo com ela só por mais dez anos... Por mais trina, cinquenta, até quando ela me aturar... Se me aturar por mais algumas horas, é claro...” “Ah, eu tenho certeza que ela atura...” falei com um sorriso, beijando sutilmente seu pescoço.
“Tem certeza?” perguntou com um tom divertido na voz.
“Sim, eu tenho... Ela me contou...” ri de leve e afastei meu rosto de seu pescoço, com intuito de encontrar seus olhos.
Eles sempre me faziam tão bem... Sempre me davam tanta paz... Era bem difícil encontrar alguém que conseguisse sustentar seu olhar por muito tempo sem desviar, e Fernando era uma das únicas pessoas que passava segurança pelo olhar.
Senti os lábios do garoto tocarem os meus suavemente e suas mãos saíram da minha cintura e pousaram no meu rosto.
“Posso te contar outra coisa?” ele perguntou com nossos lábios colados. Afirmei com a cabeça. “Eu te amo...”

E pensar que tínhamos perspectivas tão diferentes... Que na época em que olhamos aquele apartamento jamais havíamos imaginado que estaríamos naquela posição. Eu sabia que não adiantava lamentar por algo que já acontecera, mas eu não controlava meus pensamentos.
É incrível o ciclo da vida. Quando pensamos que tudo se baseia em uma linha reta e constante, aparece uma curva de variáveis indivisíveis e complexas. E por mais impossível que tudo pareça ser, no final, toda equação tinha uma solução.

Dei uma última olhada naquele apartamento colorido antes de desligar todas as luzes e deixá-lo para trás por tempo indeterminado.
Voltei a vagar pelas ruas de Bolton novamente, até parar em frente à casa de Mel. Eu me esquecera completamente que ela estava passando pelo mesmo que eu. Como eu era egoísta.
Assim que adentrei o jardim, pude enxergar Melzinha sentada na varanda da entrada, encarando os pés. Andei a passos largos até chegar onde ela estava e sentar ao seu lado. Sem dizer uma palavra, entrelacei nossas mãos e deitei minha cabeça em seu ombro. “Imagino onde eles estão a essa altura...” ela sussurrou, ainda encarando os pés. Sorri de leve.
“Também imagino... Você vai ver, eles vão ser como os soldados daqueles filmes... Só fumam, bebem e jogam o dia inteiro...” falei para descontrair, conseguindo arrancar uma sutil risada da minha amiga.
“Eu vou sentir tanta saudade... Dos dois...” murmurou, e tive que engolir o choro que há muito tempo não vinha para me atormentar.
“O tempo vai passar tão rápido e essa Guerra vai acabar tão rápido quanto começou” tentei ser otimista, sem saber se eu acreditava naquilo que acabara de falar. Eu tinha que acreditar. Ela iria acabar logo. “Por que não vamos ao Nonna’s tomar um sorvete? É uma boa ideia, não acha?”
Melzinha concordou com a cabeça e, de mãos ainda entrelaçadas, cruzamos o jardim e tomamos rumo à Packard Road.

Cada detalhe daquela cidade me lembrava Fernando. E cada hora que passava fazia parecer que já havíamos vivido anos. Ao chagarmos no Nonna’s, tivemos a surpresa de encontrar Micael e Arthur sentados na mesa de sempre. Era extremamente estranho ver apenas os dois ali, mas acho que eu deveria me acostumar.
Os garotos pareceram notar nossa presença e, assim que nos aproximamos, eles se levantaram e vieram em nossa direção. Micael me abraçava enquanto Arthur abraçava Melzinha. Foi tão bom ter os braços de Micael me envolvendo, como se transmitissem certa força a mim. Toda aquela situação me fez perceber que, por mais importante que Fernando fosse para mim, por mais que o que tínhamos era muito especial, não era só eu quem sofria com sua partida. Todos ali perderam parte de si. Nós seis éramos parte de um todo, éramos um conjunto, uma cadeia inseparável. Sem Chay e Fernando, não estávamos completos. Mas isso não significava que estávamos destruídos. Ainda tínhamos uns aos outros. Eu ainda tinha Melzinha, Micael e Arthur. Melzinha ainda tinha a mim, Arthur e Micael. Micael tinha Arthur, Melzinha e a mim. Arthur tinha Micael, a mim e a Melzinha. Por mais que faltasse um pedaço de nós, ainda éramos os mesmos. Ainda tínhamos nossa amizade e nosso amor para nos sustentar. Tínhamos de ser fortes pelos nossos amigos que estavam lá fora. O tempo praticamente inteiro que passamos no Nonna’s foi coberto pelo silêncio. Não era algo constrangedor, era, inclusive, de algum modo reconfortante. Eu tinha certeza de que o que passava pela minha mente também passava pela mente de três ali sentados comigo. E foi com esse mesmo silêncio que eles me deixaram em frente ao portão de ferro ornamentado da mansão que, parecia milênios atrás, costumava ser minha casa. Encarei-o como se fosse uma peça de arte rara, me preparando para entrar e encarar uma fase completamente nova da minha vida. A partir do momento que eu adentrasse aqueles portões e aquela casa, tudo se tornaria real. Todos aqueles pensamentos e recentes acontecimentos que pareciam borrões na minha mente se realizariam. Eu não poderia mais fugir do que estava acontecendo. Mas, de qualquer maneira, eu não fugiria.

Um som vindo de fora dos portões da casa me chamou a atenção. Resolvi ignorar, imaginando que fosse apenas um dos bares desordenados que tinha por ali. Tentei voltar ao meu pensamento anterior, mas algo me deixou mais intrigada quando passei a escutar aquele som com mais cautela.
Wise man say only fools rush in…
Eu conhecia aquelas palavras... Eu conhecia aquela sinfonia...
But I can’t help falling in love with you…
Aquela voz era inconfundível.
Shall I stay? Would it be a sin?
Mesmo distorcida pela distância, eu sabia de quem eram aquelas palavras...
If I can’t help falling in love with you…
Era a minha música sendo tocada a alguns metros dali...
Like a river flows surely to the sea
Darling so it goes, some things are meant to be.

Eu precisava descobrir de onde vinha aquele som. Levantei-me imediatamente da cama.
Take my hand
Take my whole life too.

Fui em direção à minha janela a procura da origem daquele som. Olhei para todos os lados, além dos muros da minha casa. Vi os guardas também procurando o causador daquele transtorno à vizinhança.
For I can’t help falling in love with you…
Apertei meus olhos na tentativa de ver melhor, na tentativa de achar uma alma viva naquela escuridão da rua, mas eu não via nada.
Like a river flows surely to the sea
Darling so it goes, some things are meant to be.

Então, após muita procura e aflição, pude identificar atrás do muro esquerdo (o qual fronteirava com o meu quarto), um carro. Um carro que eu jamais havia visto antes, e muito menos conhecia alguém, que conhecesse alguém, que o tivesse.
Possuía os vidros esfumaçados, então era fisicamente impossível enxergar qualquer coisa (ou alguém) dentro do automóvel.
A música parecia cada vez mais alta, e a voz de Elvis ecoava por toda a White River Street. Várias casas ligaram as luzes frontais e saíram bravas e inconformadas com aquela barbaridade. O que estaria um carro velhote daqueles, tocando um som em volume não permitido àquela hora (os moradores da White River seguiam à risca todas as normas do condomínio) defronte à casa dos Blanco?
Mary já havia acordado e agora andava a passos pesados em direção à portaria.
‘DE ONDE VEM ESSE SOM? QUEM É O IMPERTINENTE QUE ATRAPALHOU MEU SONO?’ ela gritava.

Take my hand
Take my whole life too.

O porteiro apontou para o lugar de onde o som vinha, enquanto minha mãe gesticulava grosseiramente e gritava com os seguranças. De repente, um deles apontou para a janela onde eu estava pendurada, e pude ver o olhar furioso de Mary sobre mim. Por que diabos ele apontou para mim? E por que ela me olhou de maneira furiosa? Sou eu quem está naquele carro, colocando pra tocar aquela música?
For I can’t help falling in love with you...
Foi então que percebi… Percebi que a música estava sendo tocada para mim… Para mim! Aquele calhambeque estava direcionando o som para mim! Eu estava recebendo uma serenata! A primeira serenata da minha vida!
Eu estava maravilhada. Nem ao menos escutava as palavras rudes que Mary gritava abaixo da minha janela. Eu não conseguia tirar os olhos do carro com pintura amarela descascada. Meus lábios estavam abertos em um sorriso débil, minha mente trabalhava a mil por segundo, meu coração batia descompassado e parecia querer saltar do meu peito e ir de encontro ao dono do carro.
Será que a pessoa sabia o quanto eu amava Elvis Presley? Será que era coincidência o fato de que aquela era a música que tocava no meu ponto mais fraco? E a pergunta mais instigante: quem seria o dono do carro?

Vagamente vi alguns seguranças indo correndo em direção ao automóvel e pude escutar o arranco que o carro deu ao dar a partida. Ele engatou a primeira marcha, de modo que seus pneus cantassem e soltassem fumaça pelo lugar onde estava estacionado.
E pude perceber, que na última frase da música, o autor de tal escândalo aumentou o volume até o máximo que uma caixa de som poderia aguentar, fazendo com que eu escutasse-a nitidamente...
I can’t help falling in love with you...
Meu olhar imediatamente se direcionou ao local onde o carro de Fernando sempre parava quando tocava as serenatas. Me lembrei instantaneamente do efeito que elas tinham em mim. Mais do que o efeito romântico e enigmático, elas eram minha libertação da cadeia que, na época, era viver no mesmo teto que Mary. Sorri involuntariamente ao perceber, pela milésima vez, como Fernando sempre estivera me apoiando e me ajudando sem que eu conhecesse o autor daquelas serenatas misteriosas no meio da noite.
Senti uma vontade urgente de ouvir Elvis. Realizei que fazia provavelmente séculos que eu não escutava meu Rei, que eu não deixava sua poesia fluir dentro das minhas veias como um calmante natural. Talvez fosse exatamente aquilo que eu precisava naquele momento.
Abri então os pesados portões de ferro e deixei que o perfume das inúmeras flores daquele imenso jardim enchessem meus pulmões enquanto meus pés caminhavam automaticamente até a gigante varanda da mansão. A porta de madeira estava fechada da exata maneira como eu me lembrava, mas eu não escutava nenhum som vindo de dentro da casa. Girei a maçaneta e, ao contrário do que eu imaginava e para o meu alívio, o turbilhão de memórias não me atingiu em cheio. Minha cabeça estava vazia naquele momento, bem do jeito que eu queria que estivesse. Fechei os olhos e sorri, sabendo que estava preparada para as novas recordações que eu teria a partir daquele momento. Eu estava leve pela primeira vez naquele dia, e tal sensação provavelmente tinha a ver com o fato de eu avistar Meredith no topo da enorme escada bifurcada. Seu olhar em minha direção era atônito, sua boca estava entreaberta e sua expressão era a de quem acabara de ver um fantasma, e eu provavelmente parecia um.
Fiz o que meu coração apertado implorava para que eu fizesse: subi as escadas correndo e abracei-a com todas as minhas forças restantes. Acho que aquela baixinha era o que eu mais sentia falta naquela casa. De sua voz estridente, seus sermões, sua comida maravilhosa e seu jeito maternal e incrível de cuidar de mim. Quando a soltei, as lágrimas consumiam seus olhos e ela tentava falar qualquer coisa, mas não conseguia. Simplesmente sorri e abracei-a novamente, quando vi a última porta do corredor se abrir, dando espaço a uma Mary extremamente magra e feições enfermas. Ela estava em piores condições que as minhas, eu não tinha a mínima dúvida, e aquela sensação de egoísmo me acolheu novamente. Eu só pensava em mim, no meu sofrimento, em como seria minha vida sem Fernando, mas sempre me esquecia de pensar como era a vida de Mary sem John; eu pelo menos veria Fernando novamente, e eu tinha absolutamente certeza disso, mas ela jamais reencontraria o amor de sua vida.
Dessa vez corri em sua direção e a abracei como nunca havia feito antes, me rompendo em lágrimas que antes não queriam descer. Mary fez o mesmo, e não sei quanto tempo ficamos daquela maneira, minutos ou talvez horas, mas aquele abraço me fez esquecer todos os atritos que tivemos, todas as discussões, todos os gritos, todos os desaforos. Esqueci o quanto a odiava e me lembrei do quanto a amava de verdade.
“Fernando partiu...” sussurrei em meio de soluços e lágrimas e senti seus braços me envolvendo ainda mais forte.
“Ele vai voltar...” Mary sussurrou de volta no mesmo tom que eu, e se alguém me falasse que isso aconteceria há alguns meses eu jamais acreditaria. Ela então me afastou gentilmente e depositou um beijo carinhoso em minha testa, entrelaçando nossas mãos e nos fazendo vagar pela mansão.

O dia se arrastara lentamente de uma forma boa e por algum milagre divino Fernando se manteve longe dos meus pensamentos. Eu consegui até mesmo soltar alguns risos enquanto, na cozinha, Mary, Meredith e eu relembrávamos momentos da minha infância, de como eu era uma criança extremamente difícil e encapetada. Mere cozinhava meu prato favorito – lasanha – enquanto Mary e eu conversávamos distraidamente, sem deixar que memórias difíceis trouxessem tudo aquilo que tentávamos esquecer naquele momento. No entanto, de tempos em tempos, eu era abatida por uma sensação estranha no fundo do estômago, uma náusea e um nó se formando na minha garganta enquanto eu tentava ferozmente afastar aquela sensação de vazio que resolvia me atormentar quando eu menos esperava. Chacoalhava a cabeça e voltava a prestar atenção na voz aguda de Meredith e prestando uma atenção dobrada nos movimentos que fazia com a colher na panela de molho vermelho.
Quando o jantar foi finalmente servido, minha mãe fez questão que Mere se sentasse conosco, coisa que jamais fizera, e senti uma agradável sensação de estar entre a família. Eu era apaixonada pela lasanha de Meredith, eu sempre dizia que era um pedaço de Deus na minha boca toda, e com certeza foi o que eu mais havia sentido falta em todo esse tempo que estivera fora. Todas as minhas tentativas de cozinhar para Fernando ou tio Lewis uma lasanha decente haviam sido falhas, e nada no mundo se comparava à lasanha de Mere. E foi por isso que me assustei quando, ao colocar aquele pedaço de Deus na boca, meu estômago foi embrulhado por um enjoo insuportável, me fazendo largar o garfo brutalmente e me pondo a correr em direção ao banheiro mais próximo. Eu não havia comido nada o dia inteiro, portanto não havia nada para ser jogado fora, o que fez minha garganta doer; eu ainda podia sentir o cheiro nauseante da comida em minhas narinas, fazendo meu estômago revirar novamente no momento em que Mary e Meredith adentraram o banheiro preocupadas. Mamãe sentou-se comigo no chão e segurou meus cabelos, mas nada saía.
Eu provavelmente estava mais nervosa do que eu tinha conhecimento. Eu provavelmente estava sem comer por mais tempo do que realizara. Ou poderia ser outra coisa.

Mas a ideia era absurda. Absurda demais. Tão absurda que fez meu estômago se contorcer novamente e lágrimas queimarem meus olhos sutilmente. Encarei Mary completamente assustada. Ela de algum modo entendeu o que meu olhar amedrontado significava.
Eu nunca havia me preocupado antes em contar minha menstruação, mas naquele momento desesperador eu não conseguia me lembrar da última vez em que havia de fato menstruado, a não ser por algumas gotas de sangue que saíram há duas semanas, mas não dei tanta importância. Mas fazia sentido naquele momento.
“Não...” sibilei horrorizada, sentindo um desespero gritante se apoderar de mim a cada segundo que aquela informação crescia, literalmente, dentro de mim. Não podia ser. Era coisa da minha cabeça. Aqueles enjoos não significavam nada a não ser meu choque pelos últimos acontecimentos. Não significavam nada. Não podiam significar. “Não...” soltei novamente com mais firmeza. Talvez se eu negasse com mais ferocidade aquilo realmente não aconteceria.
Encarei Mary e Meredith seguidamente, procurando em suas expressões o que aquilo poderia significar, procurando a negação que eu tanto ansiava, querendo que elas me dissessem que aquilo não era o que eu pensava que poderia ser. Mas as duas me encaravam identicamente, com a expressão num misto de surpresa e pena.
Não.
Fernando não estava ali. Aquilo simplesmente não poderia estar acontecendo.
Não.
Aquilo era um pesadelo. Eu sabia que era. Se juntaria logo com aquele pesadelo que vinha sendo os últimos dias.
Não.
Era inaceitável.
Fernando não estava ali.
Eu não podia estar grávida.
 


**comentem por favor, já terminei de escrever, mais quero saber oq estão achando!!**


Continua...

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