Capítulo 26
Fernando’s POV
Tio John estava cada dia pior. Ele pediu que o
levassem para casa e que fosse tratado lá. Ele foi diagnosticado com
câncer nos rins e, por não ter sido diagnosticado mais cedo, havia se
espalhado por outros órgãos vitais. Não havia muito o que se fazer, pois
o câncer ainda era uma doença que os médicos pouco sabiam sobre.
Não
tinham contado à Luinha ainda, mas o médico lhe dera, no máximo, dois
meses. Ela ficaria inconsolável se soubesse dessa noticia, então
chegamos à conclusão – Marry, que por incrível que pareça estava, no
mínimo, sociável, e eu – que era melhor que Lua curtisse seu pai ao
máximo, na medida do possível.
Eu imaginava o que passava em sua
cabeça. Eu estava completamente confuso e atordoado com aquela situação
tão repentina, imagine Luinha. Seu pai era seu chão, seu herói, e eu
sabia como era perder alguém que amamos muito e nos espelhamos. Doía, e
como doía. Uma parte de nós se perdia.
Não queria que ela tivesse
que passar por aquela situação. Vê-la tão frágil, debilitada e
completamente desesperada também me doía. Era como se eu pudesse sentir
sua dor, sofrer com ela...
E o pior de tudo era que eu sabia que não
podia fazer nada para melhorar sua situação. Eu estava completamente
inútil. Tentava consolá-la com um abraço, um colo, um beijo, mas nada
parecia acalmá-la.
Fazia semanas que ela não saia daquela casa e, eu
e os garotos, fizemos de tudo para tentar fazê-la sair um pouco dali,
nem que fosse para dar apenas uma volta no jardim, mas nada a convencia
de sair um segundo que fosse do lado de John.
Luinha, naquele
momento, estava dentro do quarto de seu pai, e eu estava escorado na
parede do grande corredor, apenas escutando seus soluços e suspiros.
Senti
a presença forte da Sra. Blanco se aproximar, mas não ousei procurar
por seu olhar. Apesar de parecer um pouco menos ameaçadora naquele
momento, ela ainda me assustava. Eu tinha certeza que ela poderia me
matar com apenas um olhar.
Vi de esgoela que a mulher também se recostou à parede e cruzou os braços na altura da cintura.
“Obrigada, Fernando.”
Não
acreditei a principio no que ouvira. Tive que encarar sua feição
arrasada para perceber que ela realmente falara aquilo. Eu nada disse,
afinal, o que haveria de falar num momento como aquele? Tão
surpreendente e mórbido?
“Sei que sou uma megera, assim como diz
Lua, mas sou muito grata ao que vem fazendo por ela” a loira de
expressão doente, ainda assim clássica, disse num suspiro. “Então...
Obrigada.”
Eu queria dizer que eu não fazia aquilo por ela, mas
sim por Lua, portanto não tinha o que agradecer. No entanto, já sabia o
quanto aquela família já penava, eu não tinha o direito de piorar toda a
situação.
“Vou continuar fazendo tudo por Lua pelo tempo que ela permitir...” limitei-me a dizer uma verdade menos cruel.
Voltei
a encarar a porta de madeira com desenhos esculpidos à mão, respirando
aquele ar carregado de tensão e luto. Parecia que eu estava dentro de
uma das músicas deprimidas de Frederick Chopin, e cada acorde era uma
lufada de angústia inerente em meu rosto.
Escutei a porta ranger e
se abrir lentamente, mostrando a figura de uma Lua completamente
devastada. Olheiras profundas e escuras contornavam olhos caídos e
inchados; suas bochechas estavam afundando em seu roso pálido, indicando
que ela provavelmente estava sem comer a dias. Os cabelos desgrenhados e
sujos. Ela tentava manter um pouco de sua sanidade (talvez tentando não
aparentar tão mal quanto realmente estava) pelas roupas, que
continuavam tão impecáveis quanto às que usava dois meses atrás.
Sua feição agravara o nó entalado no meio da minha garganta. Eu queria abraçá-la, mas não sabia se deveria.
“Como ele está?” perguntou Mary retoricamente. Nós sabíamos como ele estava. Seu estado de saúde era refletido em Luinha.
“Está
melhorando...” a voz de Lua pareceu sair com dificuldade. Era quase
inaudível, quase como um sussurro, uma súplica. Ela me olhou de relance,
mas desviou assim que encontrou meus olhos. Vi um reflexo de vergonha
em seu olhar; talvez ela não quisesse que eu a visse naquele estado. Eu
realmente não queria ver, não queria que ela estivesse passando por tudo
aquilo para começar. Eu via também a esperança em suas palavras, o seu
desejo mais profundo que elas fossem verdade.
Luinha saiu por
completo do quarto, fechando a porta com o maior cuidado possível.
Lançou-me outro olhar rasteiro e começou a andar lentamente pelo
corredor. Movimentava-se com demasiada dificuldade, talvez estivesse sem
forças por estar a tanto tempo sem se alimentar.
Tratei de
acompanhá-la; levei uma mão à sua cintura e a segurei firmemente,
guiando-a até seu quarto. Ela ainda não me olhava diretamente,
esforçava-se para não fazê-lo, e me senti triste por ela pensar que eu
talvez fosse sentir incomodado com sua situação. Eu queria que ela
soubesse que a partir do momento em que eu abrira meu coração para ela
entrar, eu a aceitaria e, principalmente, estaria ao seu lado até mesmo
no fim do mundo. E aquele era um pequeno apocalipse para ela. E lá
estava eu.
A ajudei a se deitar na cama e puxei a colcha florida que
jazia ali para cobri-la. Acariciei seu rosto sofrido e a observei por
alguns instantes.
“Desculpe...” Luinha começou a falar com dificuldade. “Não queria que você me visse nesse estado.”
É, eu sabia que não queria.
“Não
me importo. Você continua a mesma linda de sempre” eu rebati. E
realmente continuava. Mas sua beleza, naquele momento, me doía. Uma
beleza mórbida e penosa. Luinha sorriu, me levando a sorrir também,
inconscientemente. Fechou então os olhos e apertou minha mão.
Tirei
meus tênis e me enfiei debaixo da colcha, aconchegando meu corpo ao dela
carinhosamente. Ela encaixou suas pernas entre as minhas e me abraçou
fortemente. Eu não via, mas sabia que ela chorava. Um choro silencioso e
mil vezes mais desesperado. A apertei ainda mais contra meu corpo,
tentando fazer com que aquela dor passasse para mim.
Meu Deus, passe um pouco para mim!
Não
queria que ela carregasse todo aquele fardo, não queria que ela
sofresse tanto. Eu estava revoltado de certo modo por não poder fazer
com que aquela dor parasse. Mas eu sabia muito bem que nada, nem
ninguém, era capaz de fazer isso.
Após alguns minutos de silencio,
percebi que Lua finalmente dormira. Continuei alguns instantes a
abraçá-la, talvez por medo de soltá-la e a ver se despedaçar diante dos
meus olhos. Mas depois de um tempo, finalmente tirei meus braços de seu
corpo e sai da cama lentamente, tomando o maior cuidado do mundo para
não despertá-la. Sai do quarto e, assim que entrei no corredor, um
angustia aterrorizante estapeou meu rosto.
O doente era John Blanco,
um segundo pai para mim. A pessoa mais alegre e divertida que eu
conhecia, a que tinha o maior amor pela vida e por viver. E era terrível
pensar que a vida seria tirada de alguém como ele. Era algo tão
injusto!
John fora quem dera o maior apoio à minha família quando
também perdemos alguém que amávamos muito. Acho que ele foi uma das
principais causas do meu pai não ter caído em depressão, já que ia
praticamente todos os dias ao sitio ocupar a mente de meu pai com alguma
alegria.
E agora...
Meu pai já havia vindo visitá-lo, tão
mórbido quanto Luinha, mas tentando aparentar força, tentando
transparecer essa força a John. Os dois ainda conseguiram trocar piadas e
rirem como se nada estivesse acontecendo, e John não saia da cama
apenas por preguiça.
Escorei minha cabeça na parede e não contive em
deixar lágrimas desesperadas caírem de meus olhos. Eu tampei minha boca
com força para não deixar escapar os soluços histéricos.
Cada parte do meu corpo doía de pensar em como seria os meses depois daquele...
Tentei me acalmar, me recompor e tirar forças de algum lugar bem fundo dentro de mim, forçar que eu queria passar à Luinha.
Fui
ao final do corredor, abrindo lentamente a ultima porta. Escutei
imediatamente o barulho daquele medidor de batidas cardíacas e vi o
aparelho que ajudava John a respirar.
Sentei-me na cadeira ao lado
de sua cama e deixei minha cabeça vagar, observando-o e rezando para que
aquilo fosse mentira, apenas um pesadelo.
Segundos depois vi sua
mão se estender com dificuldade e tocar meu braço. Levantei-me de
imediato, ficando ao seu lado e o encarando com apreensão.
“Tudo bem, tio John?”
Que pergunta ridícula. Era óbvia a resposta.
O homem ainda conseguiu sorrir e fazer as covinhas aparecerem sutilmente em suas bochechas.
Ele
apertou minhas mãos com o pouco de força que lhe restava e abriu sua
boca para dizer algo. Sentei-me na berada da cama para que pudesse
escutá-lo melhor. “Pequeno Roncato...” ele sussurrou, ainda com o
sorriso no rosto. “Sabe que gosto muito de você, não sabe?”
Sorri ao escutar tais palavras, e apertei um pouco sua mão em agradecimento.
“Sei sim. Também sabe que sinto grande admiração pelo senhor...” falei sorrindo.
“Eu...
Eu queria te pedir uma coisa...” o mais velho falou com dificuldade,
arranjando forças para continuar falando. Parou um pouco e respirou
profundamente. “Eu sei que você gosta muito de Lua... Sei também que ela
gosta muito de você... E quando eu for embora... Quando eu for embora
Fernando, ela... Eu não gosto nem de pensar. O que mais me dói nesse
momento nem é o fato de todos os meus órgãos estarem falhando. É o fato
de pensar no quanto Lua vai sofrer...” vi uma lagrima sorrateira
escorrer dos olhos de John, e conseqüentemente, dos meus. “Eu sei que é
pedir demais, mas... Por favor Fernando, não deixe que ela perca essa
alegria que ela tem... Cuide dela... Por favor, cuide dela...” Tio John
suplicava com dificuldade, e nós chorávamos na mesma intensidade.
“Nem
precisa pedir, tio John. Eu estarei do lado de Lua pro que der e vier,
eu prometo. Prometo que cuidarei dela. Prometo que darei o meu melhor
pra fazê-la feliz...”
E ele sabia que eu faria. Eu só não sabia o
que eu precisaria fazer para mantê-la feliz. Eu já havia enfrentado uma
perda tão grande quanto à dela; e fora ela, Lua, quem trouxera o sorriso
de volta à minha boca, a vontade de viver. Mas e se eu não fosse o
suficiente para ela?
End of Fernando’s POV
Eu nunca havia
sentido dor tão grande. Não existia dor tão grande. Tudo dentro de mim
era comprimido, até que no fim não restasse nada.
Era um vazio, um penhasco enorme. Como se alguém tivesse roubado uma parte de mim.
Se
Fernando não estivesse do meu lado o tempo inteiro, eu provavelmente já
teria desabado milhares de vezes. E apesar de não ver sentido em nada,
apesar de não ter vontade de nada, eu ainda conseguia visualizar uma luz
no fim do túnel em seus olhos, entretanto não sabia como chegar até lá.
Estávamos dentro de um carro preto alugado, e uma fileira de
outros carros nos seguiam pela rua principal de Bolton. Minha mãe estava
no banco da frente, ao lado do motorista, e Fernando estava atrás
comigo. Minha cabeça estava escorada em seu ombro e ele fazia caricias
em meus cabelos.
Por incrível que pareça, eu não chorava. Talvez por
não restar uma lágrima sequer para cair. Talvez eu estivesse tão fraca a
ponto de não conseguir chorar.
Apenas segurava firmemente a mão livre de Fernando.
Eu
rezava todas as noites e, ao mesmo tempo em que indagava desesperada o
porquê de Deus estar levando uma parte de mim, agradecia veemente por
ele ter acrescentado outra parte á mim, mesmo que sendo de um tamanho
diferente e não tampasse completamente o buraco que John deixara.
Era
uma passeata fúnebre em direção ao cemitério. Todos aqueles carros e as
pessoas dentro deles queriam mostrar seu apoio, sua compaixão. Afinal,
John era uma grande figura naquela cidade, e fora uma perda terrível
para todos.
Não tão terrível quanto para mim.
Eu ainda não
conseguia entender. Entender porque ele havia partido tão
repentinamente. Tentava achar razões plausíveis. Era a hora dele partir,
todos diziam, mas aquela resposta simplesmente não me contentava. Não
devia haver hora certa para uma pessoa tão boa quanto meu pai ser levado
assim, do nada.
E aquela pergunta sem resposta corroia tudo dentro
de mim, fazia um monstro gritar desesperado para ser libertado, trazendo
junto consigo uma revolta avassaladora.
O carro finalmente
parou, e eu saí de lá assim que a porta foi aberta. Não ousei olhar para
o carro da frente, o que continha o caixão de John.
O caixão.
Andei a passos largos em direção a onde ele seria enterrado, com Mary e Fernando aos meus calcanhares.
O
local foi enchendo à medida que o tempo passava e que o padre falava.
Eu conseguia apenas olhar para a foto que jazia em cima de seu caixão.
Uma foto em preto e branco, que ainda assim reluzia seu sorriso
maravilhoso e suas covinhas.
E quando eu achava que não conseguiria
derramar mais uma lagrima, surpreendi-me ao ver varias caindo sem a
minha permissão, desesperadas para saírem dos meus olhos. Soluços
começaram a ser disparados da minha garganta e um desespero me corroia à
medida em que via John ser posto dentro daquele buraco na terra.
Senti
uma mão de Fernando apertar a minha com força e agradeci mentalmente.
No momento seguinte, minha outra mão foi envolvida. Olhei de esgoela e
vi Chay ao meu lado, olhando-me com um sorriso pequeno, como se dissesse
‘estou aqui, não se esqueça’. Dei uma olhada rápida ao meu redor, ainda
com lágrimas embaçando meus olhos inchados. Melzinha de mãos dadas com
Chay, também me encarando com apreensão. Arthur estava ao lado de
Melzinha, e os dois também estavam de mãos dadas. Olhei para o lado de
Fernando, que deixava algumas lágrimas escaparem de seus olhos, mas
limpava com as costas de suas mãos livres. Eu sabia que ele queria se
parecer forte para mim. Vi também as mãos de Micael nos ombros de
Fernando.
E se eu não os tivesse? E se eu não tivesse aqueles cinco ali comigo?
Uma dor ainda mais atingiu meu peito, e as lagrimas caíam ainda mais frenéticas.
Apertei ainda mais as mãos entrelaçadas às minhas.
“Obrigada...”
sussurrei, mais para mim do que para qualquer um ao meu redor. “Muito
obrigada...” continuei entre lágrimas, agradecendo tanto a eles, quanto a
Deus por não me deixar sozinha.
xxxx
Após uma semana que
enterramos John, eu sabia que minha vida jamais seria a mesma. Eu não
teria mais as risadas de John, os abraços, os conselhos, sua áurea de
anjo, as palavras certas nos momentos certos. E em cada vez que pensava
nisso, algo se rebelava dentro de mim. Aquele mesmo monstro agitava
tudo, me fazia gritar, me descabelar, afundar o rosto no travesseiro,
dormir e desejar não acordar.
Apesar de amar meus amigos, agora
acima de tudo, eu havia me afastado naquela semana. Eu precisava de um
pouco de tempo e de espaço para poder me adaptar à nova – se é que
podíamos chamá-la assim – vida. Precisava colocar minha cabeça no lugar,
encontrar uma luz, uma solução, ou simplesmente tentar acordar daquele
pesadelo. Mas nem os tapas, os beliscões, o álcool excessivo e as drogas
me faziam acordar daquele sonho horrível.
Meu apartamento estava
uma zona, e mesmo com Meredith vindo todos os dias arrumá-lo, eu não me
continha em bagunçá-lo novamente, espalhando latas e mais latas de
cerveja por todos os cantos, jogar tocos de cigarros nos tapetes, folhas
de fumo de maconha sobre minha cama.
Minha mãe ainda insistia para
que eu voltasse para sua casa, mas viver sobre o mesmo teto de Mary
ainda não era uma opção para mim. A morte do meu pai talvez parecia uma
boa razão para fazermos às pazes e tentarmos nos unir, já que a minha
dor era a dela. Mas eu não queria isso. Eu não queria voltar para aquela
casa cheia de lembranças que me assombrariam como fantasmas. Eu não
podia voltar, não agora.
Já havia decidido que não iria para
Cambridge. Eu não tinha as mesmas vontades de antes, os mesmos anseios e
sonhos de meses atrás. Para falar a verdade, nem sabia se ainda possuía
algum sonho.
Eu sabia que John iria querer que eu fosse para a
faculdade, realizasse meu grande sonho de ser independente e ser a
primeira mulher da família a cursar uma faculdade. Mas essa não era mais
a minha vontade. Faculdade não era uma opção. Eu queria que Shakespeare
se ferrasse.
Fernando tentara me convencer a ir, dizendo que aquela
era uma oportunidade única, mas me irritava todas as vezes que ele
fazia isso.
Eu sabia que ele tentava me ajudar, me animar, me fazer
ver uma luz no final do túnel. E eu também sabia que era a pior pessoa
do mundo por estar tratando-o daquela maneira, já que ele era a luz no
fim do meu túnel. Mas era como se cada vez que eu tentava ir para a luz,
a escuridão era mais forte e agarrava as minhas pernas, trazendo-me de
volta para o fundo do poço.
xxxx
Fernando estava deitado
nos pufes, roncando baixinho. Eu estava encostada no móvel da TV,
acabando com o ultimo Marlboro do maço. Fazia tempos que não conseguia
dormir, então substituía o sono por cigarros e cafés. Se não fosse por
Fernando, eu provavelmente também não comeria, mas ele aparecia todas as
manhãs com muffins e cookies para que eu forrasse o estomago.
Às
vezes conseguia me arrastar até o sitio para que pudesse comer algo que
tio Lewis cozinhara, ou simplesmente para passear comigo pelo gramado.
Mas no final da tarde, eu sempre voltava para meu apartamento sombrio e
deixava que a escuridão já amiga me acolhesse.
Naquela tarde,
Fernando viera ao apartamento e estávamos assistindo um filme na TV. Ele
dormira após dez minutos, e eu apenas via as imagens passando, não as
assistindo de verdade.
E agora o filme já havia acabado, e eu
observava Fernando ressonar. Desejei profundamente que pudéssemos voltar
a ser o que éramos; aquele casal apaixonado e inconseqüente, sem medo
do amanhã.
Mas agora, nós dois tínhamos medo. Fernando tinha medo de
eu não acordar no amanhã, e eu, às vezes egoisticamente, desejava que
não houvesse amanhã.
Depois me arrependia por ter tais pensamentos, agarrava-me ao garoto e chorava compulsivamente.
Como
eu podia pensar em não ter um amanhã? Ele era meu amanhã. Ele era a
razão por eu ainda ter um motivo para acordar. Por isso tentava ao
máximo não deixar com que a rebeldia e escuridão me agarrassem por
completo.
E quando meu apartamento estava me sufocando com toda
aquela fumaça de cigarros, resolvi que era hora de sair um pouco.
Levantei-me calmamente, não querendo acordar Fernando de seu sono
pacifico. Vai saber a quanto tempo ele também não dormia? Escrevi um
bilhete e coloquei em cima da TV, dizendo que daria uma volta no parque
do final da rua.
Quando adentrei o corredor, vi Julian de relance e
no segundo seguinte nossos corpos se chocaram com força. Os folhetos que
antes ele carregava estavam por todos os lados, e nós dois estavam no
chão.
Uma gargalhada explodiu da minha garganta, e eu ria com
ferocidade como não fazia há tempos. Nós havíamos caído tão
desengonçadamente que não tinha como não rir.
“Me desculpe!” falei
entre risos, tentando me levantar e ajudar Julian a se levantar, o qual
também estava estatelado no chão entre gargalhadas.
Quando ele se levantou, comecei a ajudá-lo a recolher os folhetos amarelos que estavam em todos os lugares.
“Como eu posso ser tão distraído e estabanado?” ele dizia ainda entre risos.
Apenas depois de ter recolhido uns dez folhetos foi que eu li o conteúdo escrito neles.
Estamos em pleno século XX, e vivemos como se ainda estivéssemos no XIX.
Chega de repressão! Chega de censura! Chega de guerras!
Diga sim à liberdade, e junte-se ao Movimento Estudantil Universal.
Para mais informações, Rua Garamond, número 1115.
Entreguei
os folhetos a Julian e o encarei com curiosidade. Esqueci-me
completamente do mundo que me cercava e do que estava acontecendo nele. A
corrida bélico-espacial entre União Soviética e Estados Unidos ainda
era acirrada, assim como a luta entre socialismo e capitalismo. John
Kennedy era o novo presidente dos Estados Unidos. Um novo remédio havia
sido criado, uma pílula anticoncepcional para as mulheres. Eu ainda não
havia a experimentado, mas a idéia de poder tomar um remédio que
evitaria uma gravidez me soou extremamente libertadora. Quero dizer,
agora, mais do que nunca, nós mulheres tínhamos poder sobre nosso
próprio corpo, sobre nossas decisões. Agora, oficialmente, mostrávamos
que não nascíamos apenas para procriar e cuidar de lares e maridos.
Podíamos escolher se queríamos ou não ter filhos, queríamos ou não nos
casar. As universidades davam cada vez mais espaço para nós e, mesmo que
eu não fosse freqüentar uma, comemorava pela vitória.
A Guerra do Vietnã estava no auge, causando a revolta de todos os estudantes e idealistas espalhados pelo mundo.
A
repressão, apesar de não estar escancarada, estava em todo lugar. O
Reino Unido apoiava os Estados Unidos na Guerra fria, obviamente. E por
conseqüência, tentava manter o capitalismo em alta em nossa nação.
Ao
perguntar a Julian sobre o que jazia no panfleto, ele me explicou
melhor a situação. Apesar de parecer um país completamente livre, e
tentar não se mostrar repressor quanto o comunismo da União Soviética, a
polícia inglesa sempre dava um jeito de sumir e repreender aqueles que
idealizavam uma nação mais justa e igualitária. Julian contou que vários
de seus amigos foram pegos em Londres depois de fazerem passeatas, e
que jamais foram vistos novamente.
“E não acha que se sair
distribuindo esses panfletos pela cidade não vai acontecer o mesmo com
você?” perguntei preocupada e cínica ao mesmo tempo. Julian deu de
ombros.
“Eu realmente não me importo. Quero apenas ver se consigo
abrir os olhos das pessoas. Quero que elas acordem para a vida, olhem
para o mundo ao redor delas! Uma guerra mal acabou e já tem outra tão
horrível quanto acontecendo bem embaixo dos nossos narizes! E além do
mais, todos nós devíamos ter o direito de acreditar e lutar pelo que
quiséssemos! Sabia que um muro está sendo construído bem no meio da
cidade de Berlim?” neguei com a cabeça. “Pois é! Isso é um absurdo...
Estão acontecendo milhares de revoltas em toda a Europa... E nos Estados
Unidos! A Irlanda, bem do nosso lado, está fazendo passeatas
maravilhosas e libertadoras. Claro que ainda tem os conflitos de sempre
entre os católicos e protestantes, mas ainda assim muitos jovens estão
lutando por um mundo melhor!”
Os olhos de Julian brilhavam ao
falar de seus ideais, e sua empolgação me contagiava. O modo como ele
falava de eu idealismo, de seu anseio por um mundo de paz e igualdade,
era completamente contagiante.
Eu sempre gostara dos ideais
marxistas, mas apenas lia seus livros e imaginava como o mundo seria
melhor se não houvesse tanta desigualdade. Mas jamais pensara em colocar
as mãos na massa, tentar realmente mudar o mundo. Sempre estive ali,
cercada por uma bolha que me impedia a ver mais de dois palmos à minha
frente. Nem me lembrava da Guerra do Vietnã, e que centenas de pessoas
morriam todos os dias. Nem me lembrava que o mundo todo ainda estava
abalado pela Segunda Grande Guerra, e que estávamos prestes a ter uma
Terceira a qualquer momento. Vivíamos em uma agonia, sabendo que os
Estados Unidos e a União Soviética tinham a capacidade de destruir o
planeta dezenas de vezes tamanho era seus poderes bélicos. Vivíamos na
tensão de que, a qualquer momento, uma bomba atômica poderia cair bem ao
lado de sua casa.
Nem mesmo percebi que havíamos saído do prédio
e agora andávamos na calça da Rua Lafayette, com Julian discursando e
distribuindo panfletos. Ele oferecera a me levar ao comitê do movimento,
onde vi uma dúzia de jovens de todos os sexos e raças reunidos,
conversando animados sobre a próxima passeata que fariam.
Eu estava completamente extasiada pelo momento, pela possibilidade de poder participar de algo tão grandioso.
Decidi
que estava farta de apenas ficar me martirizando pelo em casa, e podia
fazer algum bem para a sociedade. John gostaria que eu o fizesse.
Sentei-me
ao lado de Julian, e acenei a todos quando ele me apresentou. Escutei-o
discursar sobre as estratégias da passeata da semana que vem, que teria
de ser ainda mais grandiosa e estrondeante que a ultima. Seria na rua
principal de Bolton, a Packard Road. Várias pessoas já haviam os
procurado, interessados em participar da manifestação. Ela seria
completamente pacífica, tocariam músicas, fariam bonecos enormes
segurando placas com Liberdade, Igualdade, Fraternidade, o lema da
Revolução Francesa, e que agora caía como luva para a nossa causa.
xxxx
Assim
que cheguei em casa, contei a novidade a Fernando. Ele parecia tão
animado quanto eu ao escutar minha empolgação. Eu sabia que ele ficaria
feliz em me ver finalmente... Renovada. Ou pelo menos parecendo
renovada. Convenci-o e meus amigos a participarem da passeata e todos
pareciam muito empolgados com a idéia. Eu ia todos os dias ao Comitê
junto com Fernando, e alguns dias Mel, Chay, Micael e Arthur também iam.
Eu tinha certeza que Arthur ia apenas por causa do baseado grátis que
fumava no final de cada reunião.
Eu finalmente havia acordado.
Havia conseguido sair do túnel com a luz tão distante em que Fernando
sempre tentava me tirar. Às vezes até íamos à mansão de Mary visitá-la.
Ela parecia uma nova pessoa. Ainda tinha o olhar cínico sobre Fernando,
mas tentava ao máximo – e eu percebia – parecer que o suportava. Eu já
havia perdido as contas de quantas vezes ela me pedira desculpas. Ela
também havia acordado, de modo que visse que status realmente não era
nada, e se martirizava todos os dias por ter sido sempre tão rude comigo
e com John.
Essa nova personalidade de Mary às vezes. Tinha medo de
que a qualquer momento ela poderia acordar e voltar a ser o demônio que
era.
“Tenho medo de perder você também” ela dizia com lágrimas
borbulhando seus olhos. “E depois me realizar que, além de péssima
esposa, fui uma péssima mãe...”
E depois eu sorria tristonha pelo
fato de ter sido preciso algo tão drástico acontecer conosco para que
pudéssemos finalmente tratar-nos como mãe e filha.
Algumas noites
eu dormia com Fernando no sitio. Ele insistia em não me deixar sozinha,
e agora eu também agradecia por não estar e não querer ficar sozinha.
Ele não podia estar sempre deixando tio Lewis sozinho, por isso dormia
uma noite em meu apartamento, e nas três noites seguidas eu passava no
sítio dos Roncato.
Fernando e eu estávamos deitados no gramado de
mãos dadas, encarando o céu sardento de estrelas sobre nós, e com
Bradock ressonando alto em nossos ouvidos. Rolei meu corpo, de modo que
pudesse ficar deitada no peito de Fernando. O garoto ainda encarava o
céu, e eu agora observava a pouca luz iluminar seu lindo rosto. Aquele
sempre fora meu hobbie favorito, encarar seus traços indefectíveis,
curvá-los com meus dedos somente para guardar na memória cada detalhe. E
por estar tão distante dele – mesmo ele estando sempre ao meu lado –
fazia um bom tempo que não o observava.
Seus lábios se curvaram
em um sorriso quando percebeu que eu o analisava, mas continuou olhando
para cima. Depositei um beijo leve em seu maxilar.
“Obrigada,
Fernando...” sussurrei em seu ouvido, aconchegando-me novamente em seu
peito, e sentindo o garoto envolver-me com todo seu corpo em um abraço.
Beijou o topo da minha cabeça e colou nossas testas em seguida.
“Não
tem porque me agradecer, Luinha” ele disse sereno, de olhos fechados e
roçando seu nariz no meu. Entrelacei minha mão na sua.
“Tenho sim, e
por muito...” sibilei e o vi abrir os olhos lentamente, observando-me
com cautela, esperando por mais explicações. “Tenho que agradecer por
não ter desistido de mim...” Fernando sorriu sutilmente.
“Eu nunca
vou desistir de você, Luinha...” ele disse num sussurro, fazendo-me
fechar os olhos ao escutar tais palavras com tantas sinceridades.
Segurei-me para não despejar uma lagrima.
“Eu sei... É por isso que
te agradeço...” substitui as lagrimas por um sorriso. Abri os olhos
ainda marejados, e encarei o mar de perfeição que era os dele.
“Eu
te amo tanto, Fernando...” suspirei e me rendi ao pranto, sentindo o
garoto apertar ainda mais seu corpo contra o meu. “Te amo tanto, tanto,
tanto...”
Abracei-o com todas as minhas forças e afundando meu rosto
em seu pescoço, aspirando aquele cheiro natural e entorpecente que
exalava de seus poros.
Levantei novamente meu rosto, encarando-o.
Ele limpou o rastro que as lágrimas deixaram em meu rosto com as mangas
de seu moletom e sorriu. Em um impulso, o beijei. Fazia tempo que não
sentia o gosto maravilhoso de sua boca; na verdade nem me lembrava qual
fora a ultima vez em que nos beijamos. Então fiz questão que beijá-lo
com ferocidade, puxando seu corpo para cima do meu.
O sítio estava todo silencioso e escuro, o único som que escutávamos era o do vento balançando veemente a copa das árvores.
O
nosso beijo, além do gosto usual, foi completado por um diferente. Como
se fosse o gosto do mar invadindo nossas bocas, um gosto salgado devido
às lágrimas que agora paravam de cair.
Eu tinha um novo desejo
fulminando dentro de mim. Eu queria sentir Fernando, queria fazer amor
como se fosse o ultimo dia da minha vida. Eu estava morrendo de saudades
das sensações esplendidas que ele me causava ao preencher todas as
lacunas vazias com seu amor. De poder agarrar-lhe os cabelos, arranhar
suas costas, escutar meu nome sair como uma súplica de sua garganta.
Coloquei
as mãos por dentro de seu moletom e passei as unhas por cada centímetro
de pele de seu abdome, vendo-o contrair a tal ato. Tirei a peça de
roupa em um piscar de olhos, beijando seu pescoço e ombros nus com
urgência. Senti suas mãos invadirem meu vestido e tirarem minha calcinha
com velocidade.
Procurei novamente por sua boca, beijando-o e
puxando seus cabelos energeticamente. Nossas mãos se embaralharam quando
nós dois fomos em direção ao botão de sua calça jeans. Ele deixou que
eu a desabotoasse e a abaixasse um pouco.
Fernando me abraçou
fortemente, e eu cravei minhas unhas em seus braços torneados, esperando
ansiosamente para senti-lo. Nossos rostos estavam grudados e nossas
respirações completamente embaralhadas.
Então finalmente me senti preenchida por prazer, e deixei que toda aquela luxuria nos envolvesse.
Nossos
corpos se moviam em sincronia, nossos suspiros abafados eram uma
sinfonia perfeita e nossos olhos fixos um no outro aumentava ainda mais a
intensidade e insanidade do momento.
Desenhei com as unhas a curva de sua coluna, enquanto Fernando segurava minha coxa com furor.
A
cada movimento eu me sentia mais completa, mais entorpecida... Cada vez
que Fernando gemia meu nome contra a curva do meu pescoço, me sentia
mais enlouquecida. E quando senti cada músculo do meu corpo se contrair
diante da forma máxima de prazer, grudei nossos lábios para que eu não
gritasse ao ar livre e meus gemidos desesperados não ecoassem dentro do
quarto de tio Lewis.
Abracei-o ainda mais forte, impedindo-o de
sair de dentro de mim. Eu queria nossos corpos encaixados pelo máximo de
tempo que eu conseguisse.
Os olhos de Fernando ainda estavam presos sobre os meus, vidrados como os de um louco.
Ele não tardou a sair de cima de mim, puxando-me para seu peito, e me abraçou pela cintura.
Fechei
meus olhos lentamente, rendendo-me ao cansaço. Mas, pela primeira vez
em dias, fechei os olhos com segurança, tendo a certeza de que acordaria
no outro dia sabendo que tudo estaria daquela mesma maneira, que
Fernando estaria do meu lado. E realizei-me também que, apesar dele
saber claramente de meus sentimentos, aquela fora a primeira vez em que
eu os verbalizara.
Aproximei minha boca de seu ouvido e, depois de beijar seu lóbulo sutilmente, sussurrei:
“Eu te amo...”
Continua...
Demorei mas enfim li esse cap.. =) Oq dizer? Simplesmente CHOREIII ♥ Mt lindo.. TUDO, triste tbm, mas apesar de td é lindo..
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