segunda-feira, 6 de maio de 2013

Web Doce Amor

                                 Capítulo 26

 

Fernando’s POV


Tio John estava cada dia pior. Ele pediu que o levassem para casa e que fosse tratado lá. Ele foi diagnosticado com câncer nos rins e, por não ter sido diagnosticado mais cedo, havia se espalhado por outros órgãos vitais. Não havia muito o que se fazer, pois o câncer ainda era uma doença que os médicos pouco sabiam sobre.
Não tinham contado à Luinha ainda, mas o médico lhe dera, no máximo, dois meses. Ela ficaria inconsolável se soubesse dessa noticia, então chegamos à conclusão – Marry, que por incrível que pareça estava, no mínimo, sociável, e eu – que era melhor que Lua curtisse seu pai ao máximo, na medida do possível.
Eu imaginava o que passava em sua cabeça. Eu estava completamente confuso e atordoado com aquela situação tão repentina, imagine Luinha. Seu pai era seu chão, seu herói, e eu sabia como era perder alguém que amamos muito e nos espelhamos. Doía, e como doía. Uma parte de nós se perdia.
Não queria que ela tivesse que passar por aquela situação. Vê-la tão frágil, debilitada e completamente desesperada também me doía. Era como se eu pudesse sentir sua dor, sofrer com ela...
E o pior de tudo era que eu sabia que não podia fazer nada para melhorar sua situação. Eu estava completamente inútil. Tentava consolá-la com um abraço, um colo, um beijo, mas nada parecia acalmá-la.
Fazia semanas que ela não saia daquela casa e, eu e os garotos, fizemos de tudo para tentar fazê-la sair um pouco dali, nem que fosse para dar apenas uma volta no jardim, mas nada a convencia de sair um segundo que fosse do lado de John.

Luinha, naquele momento, estava dentro do quarto de seu pai, e eu estava escorado na parede do grande corredor, apenas escutando seus soluços e suspiros.
Senti a presença forte da Sra. Blanco se aproximar, mas não ousei procurar por seu olhar. Apesar de parecer um pouco menos ameaçadora naquele momento, ela ainda me assustava. Eu tinha certeza que ela poderia me matar com apenas um olhar.
Vi de esgoela que a mulher também se recostou à parede e cruzou os braços na altura da cintura.

“Obrigada, Fernando.”
Não acreditei a principio no que ouvira. Tive que encarar sua feição arrasada para perceber que ela realmente falara aquilo. Eu nada disse, afinal, o que haveria de falar num momento como aquele? Tão surpreendente e mórbido?
“Sei que sou uma megera, assim como diz Lua, mas sou muito grata ao que vem fazendo por ela” a loira de expressão doente, ainda assim clássica, disse num suspiro. “Então... Obrigada.”
Eu queria dizer que eu não fazia aquilo por ela, mas sim por Lua, portanto não tinha o que agradecer. No entanto, já sabia o quanto aquela família já penava, eu não tinha o direito de piorar toda a situação.
“Vou continuar fazendo tudo por Lua pelo tempo que ela permitir...” limitei-me a dizer uma verdade menos cruel.

Voltei a encarar a porta de madeira com desenhos esculpidos à mão, respirando aquele ar carregado de tensão e luto. Parecia que eu estava dentro de uma das músicas deprimidas de Frederick Chopin, e cada acorde era uma lufada de angústia inerente em meu rosto.
Escutei a porta ranger e se abrir lentamente, mostrando a figura de uma Lua completamente devastada. Olheiras profundas e escuras contornavam olhos caídos e inchados; suas bochechas estavam afundando em seu roso pálido, indicando que ela provavelmente estava sem comer a dias. Os cabelos desgrenhados e sujos. Ela tentava manter um pouco de sua sanidade (talvez tentando não aparentar tão mal quanto realmente estava) pelas roupas, que continuavam tão impecáveis quanto às que usava dois meses atrás.

Sua feição agravara o nó entalado no meio da minha garganta. Eu queria abraçá-la, mas não sabia se deveria.
“Como ele está?” perguntou Mary retoricamente. Nós sabíamos como ele estava. Seu estado de saúde era refletido em Luinha.
“Está melhorando...” a voz de Lua pareceu sair com dificuldade. Era quase inaudível, quase como um sussurro, uma súplica. Ela me olhou de relance, mas desviou assim que encontrou meus olhos. Vi um reflexo de vergonha em seu olhar; talvez ela não quisesse que eu a visse naquele estado. Eu realmente não queria ver, não queria que ela estivesse passando por tudo aquilo para começar. Eu via também a esperança em suas palavras, o seu desejo mais profundo que elas fossem verdade.
Luinha saiu por completo do quarto, fechando a porta com o maior cuidado possível. Lançou-me outro olhar rasteiro e começou a andar lentamente pelo corredor. Movimentava-se com demasiada dificuldade, talvez estivesse sem forças por estar a tanto tempo sem se alimentar.
Tratei de acompanhá-la; levei uma mão à sua cintura e a segurei firmemente, guiando-a até seu quarto. Ela ainda não me olhava diretamente, esforçava-se para não fazê-lo, e me senti triste por ela pensar que eu talvez fosse sentir incomodado com sua situação. Eu queria que ela soubesse que a partir do momento em que eu abrira meu coração para ela entrar, eu a aceitaria e, principalmente, estaria ao seu lado até mesmo no fim do mundo. E aquele era um pequeno apocalipse para ela. E lá estava eu.
A ajudei a se deitar na cama e puxei a colcha florida que jazia ali para cobri-la. Acariciei seu rosto sofrido e a observei por alguns instantes.

“Desculpe...” Luinha começou a falar com dificuldade. “Não queria que você me visse nesse estado.”
É, eu sabia que não queria.
“Não me importo. Você continua a mesma linda de sempre” eu rebati. E realmente continuava. Mas sua beleza, naquele momento, me doía. Uma beleza mórbida e penosa. Luinha sorriu, me levando a sorrir também, inconscientemente. Fechou então os olhos e apertou minha mão.
Tirei meus tênis e me enfiei debaixo da colcha, aconchegando meu corpo ao dela carinhosamente. Ela encaixou suas pernas entre as minhas e me abraçou fortemente. Eu não via, mas sabia que ela chorava. Um choro silencioso e mil vezes mais desesperado. A apertei ainda mais contra meu corpo, tentando fazer com que aquela dor passasse para mim.

Meu Deus, passe um pouco para mim!
Não queria que ela carregasse todo aquele fardo, não queria que ela sofresse tanto. Eu estava revoltado de certo modo por não poder fazer com que aquela dor parasse. Mas eu sabia muito bem que nada, nem ninguém, era capaz de fazer isso.
Após alguns minutos de silencio, percebi que Lua finalmente dormira. Continuei alguns instantes a abraçá-la, talvez por medo de soltá-la e a ver se despedaçar diante dos meus olhos. Mas depois de um tempo, finalmente tirei meus braços de seu corpo e sai da cama lentamente, tomando o maior cuidado do mundo para não despertá-la. Sai do quarto e, assim que entrei no corredor, um angustia aterrorizante estapeou meu rosto.
O doente era John Blanco, um segundo pai para mim. A pessoa mais alegre e divertida que eu conhecia, a que tinha o maior amor pela vida e por viver. E era terrível pensar que a vida seria tirada de alguém como ele. Era algo tão injusto!
John fora quem dera o maior apoio à minha família quando também perdemos alguém que amávamos muito. Acho que ele foi uma das principais causas do meu pai não ter caído em depressão, já que ia praticamente todos os dias ao sitio ocupar a mente de meu pai com alguma alegria.
E agora...
Meu pai já havia vindo visitá-lo, tão mórbido quanto Luinha, mas tentando aparentar força, tentando transparecer essa força a John. Os dois ainda conseguiram trocar piadas e rirem como se nada estivesse acontecendo, e John não saia da cama apenas por preguiça.
Escorei minha cabeça na parede e não contive em deixar lágrimas desesperadas caírem de meus olhos. Eu tampei minha boca com força para não deixar escapar os soluços histéricos.
Cada parte do meu corpo doía de pensar em como seria os meses depois daquele...
Tentei me acalmar, me recompor e tirar forças de algum lugar bem fundo dentro de mim, forçar que eu queria passar à Luinha.
Fui ao final do corredor, abrindo lentamente a ultima porta. Escutei imediatamente o barulho daquele medidor de batidas cardíacas e vi o aparelho que ajudava John a respirar.
Sentei-me na cadeira ao lado de sua cama e deixei minha cabeça vagar, observando-o e rezando para que aquilo fosse mentira, apenas um pesadelo.
Segundos depois vi sua mão se estender com dificuldade e tocar meu braço. Levantei-me de imediato, ficando ao seu lado e o encarando com apreensão.
“Tudo bem, tio John?”
Que pergunta ridícula. Era óbvia a resposta.
O homem ainda conseguiu sorrir e fazer as covinhas aparecerem sutilmente em suas bochechas.
Ele apertou minhas mãos com o pouco de força que lhe restava e abriu sua boca para dizer algo. Sentei-me na berada da cama para que pudesse escutá-lo melhor. “Pequeno Roncato...” ele sussurrou, ainda com o sorriso no rosto. “Sabe que gosto muito de você, não sabe?”
Sorri ao escutar tais palavras, e apertei um pouco sua mão em agradecimento.
“Sei sim. Também sabe que sinto grande admiração pelo senhor...” falei sorrindo.
“Eu... Eu queria te pedir uma coisa...” o mais velho falou com dificuldade, arranjando forças para continuar falando. Parou um pouco e respirou profundamente. “Eu sei que você gosta muito de Lua... Sei também que ela gosta muito de você... E quando eu for embora... Quando eu for embora Fernando, ela... Eu não gosto nem de pensar. O que mais me dói nesse momento nem é o fato de todos os meus órgãos estarem falhando. É o fato de pensar no quanto Lua vai sofrer...” vi uma lagrima sorrateira escorrer dos olhos de John, e conseqüentemente, dos meus. “Eu sei que é pedir demais, mas... Por favor Fernando, não deixe que ela perca essa alegria que ela tem... Cuide dela... Por favor, cuide dela...” Tio John suplicava com dificuldade, e nós chorávamos na mesma intensidade.
“Nem precisa pedir, tio John. Eu estarei do lado de Lua pro que der e vier, eu prometo. Prometo que cuidarei dela. Prometo que darei o meu melhor pra fazê-la feliz...”
E ele sabia que eu faria. Eu só não sabia o que eu precisaria fazer para mantê-la feliz. Eu já havia enfrentado uma perda tão grande quanto à dela; e fora ela, Lua, quem trouxera o sorriso de volta à minha boca, a vontade de viver. Mas e se eu não fosse o suficiente para ela?

End of Fernando’s POV
Eu nunca havia sentido dor tão grande. Não existia dor tão grande. Tudo dentro de mim era comprimido, até que no fim não restasse nada.
Era um vazio, um penhasco enorme. Como se alguém tivesse roubado uma parte de mim.
Se Fernando não estivesse do meu lado o tempo inteiro, eu provavelmente já teria desabado milhares de vezes. E apesar de não ver sentido em nada, apesar de não ter vontade de nada, eu ainda conseguia visualizar uma luz no fim do túnel em seus olhos, entretanto não sabia como chegar até lá.

Estávamos dentro de um carro preto alugado, e uma fileira de outros carros nos seguiam pela rua principal de Bolton. Minha mãe estava no banco da frente, ao lado do motorista, e Fernando estava atrás comigo. Minha cabeça estava escorada em seu ombro e ele fazia caricias em meus cabelos.
Por incrível que pareça, eu não chorava. Talvez por não restar uma lágrima sequer para cair. Talvez eu estivesse tão fraca a ponto de não conseguir chorar.
Apenas segurava firmemente a mão livre de Fernando.
Eu rezava todas as noites e, ao mesmo tempo em que indagava desesperada o porquê de Deus estar levando uma parte de mim, agradecia veemente por ele ter acrescentado outra parte á mim, mesmo que sendo de um tamanho diferente e não tampasse completamente o buraco que John deixara.

Era uma passeata fúnebre em direção ao cemitério. Todos aqueles carros e as pessoas dentro deles queriam mostrar seu apoio, sua compaixão. Afinal, John era uma grande figura naquela cidade, e fora uma perda terrível para todos.
Não tão terrível quanto para mim.

Eu ainda não conseguia entender. Entender porque ele havia partido tão repentinamente. Tentava achar razões plausíveis. Era a hora dele partir, todos diziam, mas aquela resposta simplesmente não me contentava. Não devia haver hora certa para uma pessoa tão boa quanto meu pai ser levado assim, do nada.
E aquela pergunta sem resposta corroia tudo dentro de mim, fazia um monstro gritar desesperado para ser libertado, trazendo junto consigo uma revolta avassaladora.

O carro finalmente parou, e eu saí de lá assim que a porta foi aberta. Não ousei olhar para o carro da frente, o que continha o caixão de John.
O caixão.
Andei a passos largos em direção a onde ele seria enterrado, com Mary e Fernando aos meus calcanhares.
O local foi enchendo à medida que o tempo passava e que o padre falava. Eu conseguia apenas olhar para a foto que jazia em cima de seu caixão. Uma foto em preto e branco, que ainda assim reluzia seu sorriso maravilhoso e suas covinhas.
E quando eu achava que não conseguiria derramar mais uma lagrima, surpreendi-me ao ver varias caindo sem a minha permissão, desesperadas para saírem dos meus olhos. Soluços começaram a ser disparados da minha garganta e um desespero me corroia à medida em que via John ser posto dentro daquele buraco na terra.
Senti uma mão de Fernando apertar a minha com força e agradeci mentalmente. No momento seguinte, minha outra mão foi envolvida. Olhei de esgoela e vi Chay ao meu lado, olhando-me com um sorriso pequeno, como se dissesse ‘estou aqui, não se esqueça’. Dei uma olhada rápida ao meu redor, ainda com lágrimas embaçando meus olhos inchados. Melzinha de mãos dadas com Chay, também me encarando com apreensão. Arthur estava ao lado de Melzinha, e os dois também estavam de mãos dadas. Olhei para o lado de Fernando, que deixava algumas lágrimas escaparem de seus olhos, mas limpava com as costas de suas mãos livres. Eu sabia que ele queria se parecer forte para mim. Vi também as mãos de Micael nos ombros de Fernando.

E se eu não os tivesse? E se eu não tivesse aqueles cinco ali comigo?
Uma dor ainda mais atingiu meu peito, e as lagrimas caíam ainda mais frenéticas.
Apertei ainda mais as mãos entrelaçadas às minhas.
“Obrigada...” sussurrei, mais para mim do que para qualquer um ao meu redor. “Muito obrigada...” continuei entre lágrimas, agradecendo tanto a eles, quanto a Deus por não me deixar sozinha.


xxxx

Após uma semana que enterramos John, eu sabia que minha vida jamais seria a mesma. Eu não teria mais as risadas de John, os abraços, os conselhos, sua áurea de anjo, as palavras certas nos momentos certos. E em cada vez que pensava nisso, algo se rebelava dentro de mim. Aquele mesmo monstro agitava tudo, me fazia gritar, me descabelar, afundar o rosto no travesseiro, dormir e desejar não acordar.
Apesar de amar meus amigos, agora acima de tudo, eu havia me afastado naquela semana. Eu precisava de um pouco de tempo e de espaço para poder me adaptar à nova – se é que podíamos chamá-la assim – vida. Precisava colocar minha cabeça no lugar, encontrar uma luz, uma solução, ou simplesmente tentar acordar daquele pesadelo. Mas nem os tapas, os beliscões, o álcool excessivo e as drogas me faziam acordar daquele sonho horrível.
Meu apartamento estava uma zona, e mesmo com Meredith vindo todos os dias arrumá-lo, eu não me continha em bagunçá-lo novamente, espalhando latas e mais latas de cerveja por todos os cantos, jogar tocos de cigarros nos tapetes, folhas de fumo de maconha sobre minha cama.
Minha mãe ainda insistia para que eu voltasse para sua casa, mas viver sobre o mesmo teto de Mary ainda não era uma opção para mim. A morte do meu pai talvez parecia uma boa razão para fazermos às pazes e tentarmos nos unir, já que a minha dor era a dela. Mas eu não queria isso. Eu não queria voltar para aquela casa cheia de lembranças que me assombrariam como fantasmas. Eu não podia voltar, não agora.

Já havia decidido que não iria para Cambridge. Eu não tinha as mesmas vontades de antes, os mesmos anseios e sonhos de meses atrás. Para falar a verdade, nem sabia se ainda possuía algum sonho.
Eu sabia que John iria querer que eu fosse para a faculdade, realizasse meu grande sonho de ser independente e ser a primeira mulher da família a cursar uma faculdade. Mas essa não era mais a minha vontade. Faculdade não era uma opção. Eu queria que Shakespeare se ferrasse.
Fernando tentara me convencer a ir, dizendo que aquela era uma oportunidade única, mas me irritava todas as vezes que ele fazia isso.
Eu sabia que ele tentava me ajudar, me animar, me fazer ver uma luz no final do túnel. E eu também sabia que era a pior pessoa do mundo por estar tratando-o daquela maneira, já que ele era a luz no fim do meu túnel. Mas era como se cada vez que eu tentava ir para a luz, a escuridão era mais forte e agarrava as minhas pernas, trazendo-me de volta para o fundo do poço.


xxxx

Fernando estava deitado nos pufes, roncando baixinho. Eu estava encostada no móvel da TV, acabando com o ultimo Marlboro do maço. Fazia tempos que não conseguia dormir, então substituía o sono por cigarros e cafés. Se não fosse por Fernando, eu provavelmente também não comeria, mas ele aparecia todas as manhãs com muffins e cookies para que eu forrasse o estomago.
Às vezes conseguia me arrastar até o sitio para que pudesse comer algo que tio Lewis cozinhara, ou simplesmente para passear comigo pelo gramado. Mas no final da tarde, eu sempre voltava para meu apartamento sombrio e deixava que a escuridão já amiga me acolhesse.
Naquela tarde, Fernando viera ao apartamento e estávamos assistindo um filme na TV. Ele dormira após dez minutos, e eu apenas via as imagens passando, não as assistindo de verdade.

E agora o filme já havia acabado, e eu observava Fernando ressonar. Desejei profundamente que pudéssemos voltar a ser o que éramos; aquele casal apaixonado e inconseqüente, sem medo do amanhã.
Mas agora, nós dois tínhamos medo. Fernando tinha medo de eu não acordar no amanhã, e eu, às vezes egoisticamente, desejava que não houvesse amanhã.
Depois me arrependia por ter tais pensamentos, agarrava-me ao garoto e chorava compulsivamente.
Como eu podia pensar em não ter um amanhã? Ele era meu amanhã. Ele era a razão por eu ainda ter um motivo para acordar. Por isso tentava ao máximo não deixar com que a rebeldia e escuridão me agarrassem por completo.

E quando meu apartamento estava me sufocando com toda aquela fumaça de cigarros, resolvi que era hora de sair um pouco. Levantei-me calmamente, não querendo acordar Fernando de seu sono pacifico. Vai saber a quanto tempo ele também não dormia? Escrevi um bilhete e coloquei em cima da TV, dizendo que daria uma volta no parque do final da rua.
Quando adentrei o corredor, vi Julian de relance e no segundo seguinte nossos corpos se chocaram com força. Os folhetos que antes ele carregava estavam por todos os lados, e nós dois estavam no chão.
Uma gargalhada explodiu da minha garganta, e eu ria com ferocidade como não fazia há tempos. Nós havíamos caído tão desengonçadamente que não tinha como não rir.
“Me desculpe!” falei entre risos, tentando me levantar e ajudar Julian a se levantar, o qual também estava estatelado no chão entre gargalhadas.
Quando ele se levantou, comecei a ajudá-lo a recolher os folhetos amarelos que estavam em todos os lugares.
“Como eu posso ser tão distraído e estabanado?” ele dizia ainda entre risos.
Apenas depois de ter recolhido uns dez folhetos foi que eu li o conteúdo escrito neles.

Estamos em pleno século XX, e vivemos como se ainda estivéssemos no XIX.
Chega de repressão! Chega de censura! Chega de guerras!
Diga sim à liberdade, e junte-se ao Movimento Estudantil Universal.
Para mais informações, Rua Garamond, número 1115.

Entreguei os folhetos a Julian e o encarei com curiosidade. Esqueci-me completamente do mundo que me cercava e do que estava acontecendo nele. A corrida bélico-espacial entre União Soviética e Estados Unidos ainda era acirrada, assim como a luta entre socialismo e capitalismo. John Kennedy era o novo presidente dos Estados Unidos. Um novo remédio havia sido criado, uma pílula anticoncepcional para as mulheres. Eu ainda não havia a experimentado, mas a idéia de poder tomar um remédio que evitaria uma gravidez me soou extremamente libertadora. Quero dizer, agora, mais do que nunca, nós mulheres tínhamos poder sobre nosso próprio corpo, sobre nossas decisões. Agora, oficialmente, mostrávamos que não nascíamos apenas para procriar e cuidar de lares e maridos. Podíamos escolher se queríamos ou não ter filhos, queríamos ou não nos casar. As universidades davam cada vez mais espaço para nós e, mesmo que eu não fosse freqüentar uma, comemorava pela vitória.
A Guerra do Vietnã estava no auge, causando a revolta de todos os estudantes e idealistas espalhados pelo mundo.
A repressão, apesar de não estar escancarada, estava em todo lugar. O Reino Unido apoiava os Estados Unidos na Guerra fria, obviamente. E por conseqüência, tentava manter o capitalismo em alta em nossa nação.

Ao perguntar a Julian sobre o que jazia no panfleto, ele me explicou melhor a situação. Apesar de parecer um país completamente livre, e tentar não se mostrar repressor quanto o comunismo da União Soviética, a polícia inglesa sempre dava um jeito de sumir e repreender aqueles que idealizavam uma nação mais justa e igualitária. Julian contou que vários de seus amigos foram pegos em Londres depois de fazerem passeatas, e que jamais foram vistos novamente.
“E não acha que se sair distribuindo esses panfletos pela cidade não vai acontecer o mesmo com você?” perguntei preocupada e cínica ao mesmo tempo. Julian deu de ombros.
“Eu realmente não me importo. Quero apenas ver se consigo abrir os olhos das pessoas. Quero que elas acordem para a vida, olhem para o mundo ao redor delas! Uma guerra mal acabou e já tem outra tão horrível quanto acontecendo bem embaixo dos nossos narizes! E além do mais, todos nós devíamos ter o direito de acreditar e lutar pelo que quiséssemos! Sabia que um muro está sendo construído bem no meio da cidade de Berlim?” neguei com a cabeça. “Pois é! Isso é um absurdo... Estão acontecendo milhares de revoltas em toda a Europa... E nos Estados Unidos! A Irlanda, bem do nosso lado, está fazendo passeatas maravilhosas e libertadoras. Claro que ainda tem os conflitos de sempre entre os católicos e protestantes, mas ainda assim muitos jovens estão lutando por um mundo melhor!”

Os olhos de Julian brilhavam ao falar de seus ideais, e sua empolgação me contagiava. O modo como ele falava de eu idealismo, de seu anseio por um mundo de paz e igualdade, era completamente contagiante.
Eu sempre gostara dos ideais marxistas, mas apenas lia seus livros e imaginava como o mundo seria melhor se não houvesse tanta desigualdade. Mas jamais pensara em colocar as mãos na massa, tentar realmente mudar o mundo. Sempre estive ali, cercada por uma bolha que me impedia a ver mais de dois palmos à minha frente. Nem me lembrava da Guerra do Vietnã, e que centenas de pessoas morriam todos os dias. Nem me lembrava que o mundo todo ainda estava abalado pela Segunda Grande Guerra, e que estávamos prestes a ter uma Terceira a qualquer momento. Vivíamos em uma agonia, sabendo que os Estados Unidos e a União Soviética tinham a capacidade de destruir o planeta dezenas de vezes tamanho era seus poderes bélicos. Vivíamos na tensão de que, a qualquer momento, uma bomba atômica poderia cair bem ao lado de sua casa.

Nem mesmo percebi que havíamos saído do prédio e agora andávamos na calça da Rua Lafayette, com Julian discursando e distribuindo panfletos. Ele oferecera a me levar ao comitê do movimento, onde vi uma dúzia de jovens de todos os sexos e raças reunidos, conversando animados sobre a próxima passeata que fariam.
Eu estava completamente extasiada pelo momento, pela possibilidade de poder participar de algo tão grandioso.
Decidi que estava farta de apenas ficar me martirizando pelo em casa, e podia fazer algum bem para a sociedade. John gostaria que eu o fizesse.

Sentei-me ao lado de Julian, e acenei a todos quando ele me apresentou. Escutei-o discursar sobre as estratégias da passeata da semana que vem, que teria de ser ainda mais grandiosa e estrondeante que a ultima. Seria na rua principal de Bolton, a Packard Road. Várias pessoas já haviam os procurado, interessados em participar da manifestação. Ela seria completamente pacífica, tocariam músicas, fariam bonecos enormes segurando placas com Liberdade, Igualdade, Fraternidade, o lema da Revolução Francesa, e que agora caía como luva para a nossa causa.
xxxx
Assim que cheguei em casa, contei a novidade a Fernando. Ele parecia tão animado quanto eu ao escutar minha empolgação. Eu sabia que ele ficaria feliz em me ver finalmente... Renovada. Ou pelo menos parecendo renovada. Convenci-o e meus amigos a participarem da passeata e todos pareciam muito empolgados com a idéia. Eu ia todos os dias ao Comitê junto com Fernando, e alguns dias Mel, Chay, Micael e Arthur também iam. Eu tinha certeza que Arthur ia apenas por causa do baseado grátis que fumava no final de cada reunião.
Eu finalmente havia acordado. Havia conseguido sair do túnel com a luz tão distante em que Fernando sempre tentava me tirar. Às vezes até íamos à mansão de Mary visitá-la. Ela parecia uma nova pessoa. Ainda tinha o olhar cínico sobre Fernando, mas tentava ao máximo – e eu percebia – parecer que o suportava. Eu já havia perdido as contas de quantas vezes ela me pedira desculpas. Ela também havia acordado, de modo que visse que status realmente não era nada, e se martirizava todos os dias por ter sido sempre tão rude comigo e com John.
Essa nova personalidade de Mary às vezes. Tinha medo de que a qualquer momento ela poderia acordar e voltar a ser o demônio que era.

“Tenho medo de perder você também” ela dizia com lágrimas borbulhando seus olhos. “E depois me realizar que, além de péssima esposa, fui uma péssima mãe...”
E depois eu sorria tristonha pelo fato de ter sido preciso algo tão drástico acontecer conosco para que pudéssemos finalmente tratar-nos como mãe e filha.
Algumas noites eu dormia com Fernando no sitio. Ele insistia em não me deixar sozinha, e agora eu também agradecia por não estar e não querer ficar sozinha. Ele não podia estar sempre deixando tio Lewis sozinho, por isso dormia uma noite em meu apartamento, e nas três noites seguidas eu passava no sítio dos Roncato.
Fernando e eu estávamos deitados no gramado de mãos dadas, encarando o céu sardento de estrelas sobre nós, e com Bradock ressonando alto em nossos ouvidos. Rolei meu corpo, de modo que pudesse ficar deitada no peito de Fernando. O garoto ainda encarava o céu, e eu agora observava a pouca luz iluminar seu lindo rosto. Aquele sempre fora meu hobbie favorito, encarar seus traços indefectíveis, curvá-los com meus dedos somente para guardar na memória cada detalhe. E por estar tão distante dele – mesmo ele estando sempre ao meu lado – fazia um bom tempo que não o observava.

Seus lábios se curvaram em um sorriso quando percebeu que eu o analisava, mas continuou olhando para cima. Depositei um beijo leve em seu maxilar.
“Obrigada, Fernando...” sussurrei em seu ouvido, aconchegando-me novamente em seu peito, e sentindo o garoto envolver-me com todo seu corpo em um abraço. Beijou o topo da minha cabeça e colou nossas testas em seguida.
“Não tem porque me agradecer, Luinha” ele disse sereno, de olhos fechados e roçando seu nariz no meu. Entrelacei minha mão na sua.
“Tenho sim, e por muito...” sibilei e o vi abrir os olhos lentamente, observando-me com cautela, esperando por mais explicações. “Tenho que agradecer por não ter desistido de mim...” Fernando sorriu sutilmente.
“Eu nunca vou desistir de você, Luinha...” ele disse num sussurro, fazendo-me fechar os olhos ao escutar tais palavras com tantas sinceridades. Segurei-me para não despejar uma lagrima.
“Eu sei... É por isso que te agradeço...” substitui as lagrimas por um sorriso. Abri os olhos ainda marejados, e encarei o mar de perfeição que era os dele.
“Eu te amo tanto, Fernando...” suspirei e me rendi ao pranto, sentindo o garoto apertar ainda mais seu corpo contra o meu. “Te amo tanto, tanto, tanto...”
Abracei-o com todas as minhas forças e afundando meu rosto em seu pescoço, aspirando aquele cheiro natural e entorpecente que exalava de seus poros.

Levantei novamente meu rosto, encarando-o. Ele limpou o rastro que as lágrimas deixaram em meu rosto com as mangas de seu moletom e sorriu. Em um impulso, o beijei. Fazia tempo que não sentia o gosto maravilhoso de sua boca; na verdade nem me lembrava qual fora a ultima vez em que nos beijamos. Então fiz questão que beijá-lo com ferocidade, puxando seu corpo para cima do meu.
O sítio estava todo silencioso e escuro, o único som que escutávamos era o do vento balançando veemente a copa das árvores.
O nosso beijo, além do gosto usual, foi completado por um diferente. Como se fosse o gosto do mar invadindo nossas bocas, um gosto salgado devido às lágrimas que agora paravam de cair.

Eu tinha um novo desejo fulminando dentro de mim. Eu queria sentir Fernando, queria fazer amor como se fosse o ultimo dia da minha vida. Eu estava morrendo de saudades das sensações esplendidas que ele me causava ao preencher todas as lacunas vazias com seu amor. De poder agarrar-lhe os cabelos, arranhar suas costas, escutar meu nome sair como uma súplica de sua garganta.
Coloquei as mãos por dentro de seu moletom e passei as unhas por cada centímetro de pele de seu abdome, vendo-o contrair a tal ato. Tirei a peça de roupa em um piscar de olhos, beijando seu pescoço e ombros nus com urgência. Senti suas mãos invadirem meu vestido e tirarem minha calcinha com velocidade.
Procurei novamente por sua boca, beijando-o e puxando seus cabelos energeticamente. Nossas mãos se embaralharam quando nós dois fomos em direção ao botão de sua calça jeans. Ele deixou que eu a desabotoasse e a abaixasse um pouco.
Fernando me abraçou fortemente, e eu cravei minhas unhas em seus braços torneados, esperando ansiosamente para senti-lo. Nossos rostos estavam grudados e nossas respirações completamente embaralhadas.
Então finalmente me senti preenchida por prazer, e deixei que toda aquela luxuria nos envolvesse.

Nossos corpos se moviam em sincronia, nossos suspiros abafados eram uma sinfonia perfeita e nossos olhos fixos um no outro aumentava ainda mais a intensidade e insanidade do momento.
Desenhei com as unhas a curva de sua coluna, enquanto Fernando segurava minha coxa com furor.
A cada movimento eu me sentia mais completa, mais entorpecida... Cada vez que Fernando gemia meu nome contra a curva do meu pescoço, me sentia mais enlouquecida. E quando senti cada músculo do meu corpo se contrair diante da forma máxima de prazer, grudei nossos lábios para que eu não gritasse ao ar livre e meus gemidos desesperados não ecoassem dentro do quarto de tio Lewis.

Abracei-o ainda mais forte, impedindo-o de sair de dentro de mim. Eu queria nossos corpos encaixados pelo máximo de tempo que eu conseguisse.
Os olhos de Fernando ainda estavam presos sobre os meus, vidrados como os de um louco.
Ele não tardou a sair de cima de mim, puxando-me para seu peito, e me abraçou pela cintura.
Fechei meus olhos lentamente, rendendo-me ao cansaço. Mas, pela primeira vez em dias, fechei os olhos com segurança, tendo a certeza de que acordaria no outro dia sabendo que tudo estaria daquela mesma maneira, que Fernando estaria do meu lado. E realizei-me também que, apesar dele saber claramente de meus sentimentos, aquela fora a primeira vez em que eu os verbalizara.

Aproximei minha boca de seu ouvido e, depois de beijar seu lóbulo sutilmente, sussurrei:

“Eu te amo...”


Continua...

Um comentário:

  1. Demorei mas enfim li esse cap.. =) Oq dizer? Simplesmente CHOREIII ♥ Mt lindo.. TUDO, triste tbm, mas apesar de td é lindo..

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