Capítulo 29
Fernando's POV
Minha mala já estava pronta e posta em frente ao
sítio. Meu pai já estava avisado, e concordara com meu plano de fuga
depois que eu fui definitivamente aceito no Exército. Quando fui me
alistar, ele me aconselhara a engolir bolas de algodão, alegando que, na
época da Segunda Guerra, um amigo o fizera e fora liberado após um
raio-X. Eu estava certo de que iria ser liberado. Tinha absoluta
certeza. Aquilo não podia acontecer comigo. Era um pensamento muito
egoísta, mas eu não conseguia mantê-lo longe. Muitos garotos da minha
idade alistavam-se com orgulho por poder defender sua nação. Eu não
conseguia sentir nada além de revolta.
De acordo com meus planos, eu
ficaria fora até a Guerra acabar. Até lá eles já teriam se esquecido de
mim, obviamente. O lugar mais seguro da Europa para estar naquele
momento era algum país do Mediterrâneo, como Grécia ou Itália. Eu sabia
que a Luinha era apaixonada por História, e com certeza escolheria a
Grécia.
Ao pensar em fazê-la fugir comigo, eu me sentia mais egoísta
ainda. Ela tinha uma vida ali, tinha a mãe para ajudar agora que o pai
se fora. Tinha uma vida de luxo e conforto. Ainda podia entrar em
Cambridge. Podia ter uma vida normal. Não de fugitiva. Ela não merecia
aquilo.
Mas meu lado egocêntrico se contorcia em agonia só de pensar em ficar longe dela... Maldito eu era.
Ainda
não havia lhe contado sobre meus planos. Na verdade nem havia contado
que eu fora convocado. Ela com certeza surtaria e não iria ser racional a
ponto de pensar em um plano.
Eu já havia pegado todas as economias
juntadas até ali, e meu pai me ajudara com um pouco de dinheiro também.
Arrumaríamos um lugar simples para morar, até eu conseguir um emprego e
poder nos mudar para um lugar à altura de Luinha. Estava pensando em
até... pedi-la em casamento. Por alguma razão, aquele pensamento me
fazia sorrir como um idiota apesar dos pesares.
Eu buscaria
Luinha naquele dia. Passaríamos em seu apartamento para fazer suas
malas, inventariamos uma desculpa ou simplesmente enfrentaríamos sua
mãe, e enfim pegaríamos um trem para a França, e depois para Atenas.
No
entanto, ela não estava em seu apartamento. Esbarrei com Julian na
saída do prédio; o garoto estava completamente desorientado.
“Julian, você está bem?” perguntei, vendo-o tomar fôlego e passar as mãos nervosamente pelos cabelos.
“Uma
passeata, cara...” ele respondia ofegante e de olhos arregalados.
“Perdemos o controle! A polícia apareceu, está tendo um confronto na
Packard Road nesse momento! Estão todos lá e eu vim aqui...”
“Espere...
Espere um pouco... Todos quem?” o sangue já começou a subir na minha
cabeça, e só um pensamento passava pela mesma. “Lua não está lá, está?”
Julian abriu e fechou a boca algumas vezes, parecendo mudo por alguns
segundos, até responder apreensivo:
“Ela está cara, mas...”
“Lua
está lá?” gritei em plenos pulmões, sem me importar com os olhares
reprovadores dos que passavam pela calçada. Eu perdi completamente a
compostura só de pensar em Lua no meio do caos que Julian me descreveu.
“E O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI? POR QUE A DEIXOU SOZINHA?”
Sem que eu ao menos percebesse, já estava com as mãos envoltas no pescoço de Julian, prensando-o contra a parede.
“Acalme-se, Fernando! Vim ligar para meu pai, ele é promotor e...”
“Se
alguma coisa acontecer a ela, cara...” minha feição era provavelmente a
de um louco. Eu na verdade estava completamente louco. Soltei Julia com
fúria e corri para meu carro. Comecei a dirigir desgovernadamente, sem
me lembrar da existência de semáforos ou limite de velocidade. Eu
passaria até pela calçada se os carros não me dessem passagem.
A
Packard Road estava uma anarquia. Uma gritaria ensurdecedora, misturada
com a voz revoltada de alguém que falava com um microfone, sem contar o
barulho enlouquecedor que fazia as sirenes da polícia. Nem ao menos vi
onde estacionei, provavelmente havia parado no meio da rua, e corri o
máximo que consegui.
“RAFINHA?” eu gritava e gritava, corria e corria
por entre aquele emaranhado de gente e nenhum sinal dela. Mais a frente
a polícia já começava a conter os revoltados com cassetetes e fumaça
lacrimejante. “RAFINHA?”
O desespero já tomara conta de mim
completamente. Eu puxava meus cabelos sem dó alguma, ficando
completamente desnorteado com todas aquelas pessoas gritando e correndo
ao meu redor. E em nenhuma delas eu via o rosto de Luinha.
‘Pelo amor de Deus, onde você está?’
Corri
mais a frente, sentindo meus olhos arderem enquanto passava pela
barreira de fumaça. Mas foi quando escutei um grito muito conhecido, que
nem agonia eu sentia mais. Apenas desespero.
“VOCÊS NÃO PODEM FAZER
ISSO!” ela gritava, e por mais que eu corria, eu não parecia alcançá-la.
Aquela fumaça comprometia minha visão, e seu arregalasse ainda mais
meus olhos eu provavelmente ficaria cego, tamanha era a ardência.
“SOLTEM-NO!”
Sua voz ia ficando mais próxima, e mesmo de olhos fechados, sabia que estava chegando perto.
“NÃO!” ela gritou mais uma vez, e eu sentia o desespero estripar tudo dentro de mim.
Quando
finalmente consegui abrir meus olhos, dois policiais o dobro do tamanho
seguravam Luinha pelos braços, enquanto outros três espancavam com um
cassetete um garoto, de no máximo quinze anos.
“RAFINHA!” gritei, e tudo o que consegui fazer no momento seguinte foi correr para cima dos policiais que a seguravam.
“DOUGIE!”
sua voz era agora apenas plano de fundo, enquanto um dos policiais, que
também era muito maior que eu, acertava um murro atrás do outro em meu
rosto. Eu não conseguia sentir dor, talvez devido à adrenalina e ao
desespero; eu só queria que aqueles desgraçados ficassem longe dela.
“DOUGIE!”
Dei uma cabeçada no nariz do sujeito, sabendo que aquilo
iria fazê-lo sofrer muito com a dor antes de vir atrás de mim novamente.
Fui para cima do outro policial que segurava Luinha, mas antes que eu
pudesse acertá-lo, senti braços me puxarem brutalmente. Dois outros
policiais me imobilizaram por trás, enquanto o que antes segurava Luinha
vinha em minha direção.
Um murro na barriga. Um nas costelas. Um na bochecha.
“DOUGIE!
NÃO! PAREM COM ISSO!” ela estava desesperada. É obvio que estava. Mas
eu não conseguia me desvencilhar dos três policiais.
Senti alguns
dos meus dentes quebrarem e minha boca se encher de sangue. No entanto,
eu ficava cada vez mais fraco, e por incrível que pareça, não conseguia
sentir dor. Até o momento em que eu não conseguia sentir mais nada.
End Of Fernando’s POV
Eu
estava na cela. Na cela de Fernando. Sua cabeça estava deitada em meu
colo e ele ainda estava inconsciente. Já haviam se passado seis horas, e
ele ainda não tinha acordado. Eu ainda não tinha saído dali. Nem iria.
No
final das contas, quando viram que Fernando cedera a todos os golpes
que lhe davam e meus gritos já eram insuportáveis, os policiais
resolveram nos trazer para a cadeia.
Um desespero imensurável tomou
conta de mim enquanto eu via Fernando ser espancado e eu nada podia
fazer. Eu tentava puxar os policiais, mas com apenas um empurrãozinho
eles conseguiam me colocar no chão. O sangue começava a escorrer de
todos os lugares, e nem assim eles se cansavam de espancá-lo. Eu não
suportava mais vê-lo naquela situação, e uma dor terrível me consumia a
cada segundo.
E agora que minha mãe havia pagado minha fiança, eu
me recusava a ir pra casa. Por alguma razão inexplicável, o delegado me
deixara entrar na cela de Fernando para cuidar de seus ferimentos.
Talvez ser filha dos Blanco ainda significava alguma coisa. Talvez
pensassem que minha revolta era conseqüência da morte do meu pai, por
isso os olhares de pena, por isso deixaram-me entrar na cela.
Apesar da cena horrível de Fernando ensangüentado não sair da minha cabeça, outra me atormentava ainda mais.
Quando
ele estava completamente desacordado, os desgraçados fuçaram nos bolsos
da calça de Fernando a procura de sua identificação. Encontraram no
meio da carteira um papel dobrado, e ao lerem exclamaram:
‘Ele é do Exército. Está partindo daqui uma semana. Vamos levá-lo para a delegacia’.
Ele era do Exército? O que aquilo significava?
Um
trilhão de pensamentos passavam pela minha cabeça. Eu havia estranhado o
fato de nenhuma carta de convocação ter chegado ao sitio, quando na
verdade o estranho era que Fernando ainda não havia me contado. Por quê?
De qualquer maneira, os motivos não tinham a mínima importância
naquele momento. O que importava realmente era o fato de que ele havia
sido convocado. Uma dor ainda mais gritante apoderou-se de mim.
Nós
íamos fugir. Eu tinha certeza que, pelo o que eu conhecia de Fernando,
ele já havia feito todos os planos precisamente. Mas agora ele estava
preso. Agora ele seria obrigado a ir.
Tudo por minha causa.
Eu era a culpada.
Ele
aparecera na praça para me procurar, eu tinha certeza. Ele se metera em
confusão com os policiais por minha causa. Fora brutalmente machucado
por minha causa. E agora iria para a guerra por minha culpa.
Não. Não. NÃO!
Eu
queria gritar, queria tanto gritar! Queria esmurrar alguém, queria
bater com a minha cabeça na parede, queria esmagar alguma coisa. A raiva
de mim mesma era tudo o que dominava. Senti um enjôo insuportável, uma
repulsa gigantesca. Coloquei a cabeça de Fernando no colchão o mais
delicado que minha situação permitia e me joguei no chão, soltado toda a
minha raiva na privada ali do lado.
Eu tinha nojo de mim. Nojo do meu egoísmo, da minha incrível capacidade de prejudicar quem eu amava.
“Ei,
você está bem?” o oficial que vigiava a cela perguntou visivelmente
preocupado. Não deveria se preocupar com alguém como eu.
Apenas
acenei e enxagüei a boca com água da piazinha precária. Deixei-me cair
no chão novamente, agora completamente sem forças para agüentar meu
próprio peso. Tudo o que consegui ver antes das lágrimas embaçarem minha
visão completamente foi a imagem de Fernando, desacordado e com vários
cortes ainda cheios de sangue no rosto.
Meu estomago embrulhou-se novamente, apenas ao imaginar algo pior acontecendo com ele.
XxX
Quando
Fernando acordou, a primeira coisa que fez foi me beijar. Levantou-se
da cama com dificuldade e me abraçou com toda a força que conseguiu.
Tentei segurar o choro que tanto me atormentou em todas aquelas horas,
numa tentativa de me mostrar forte, e fazer com que Fernando visse que
eu ainda não havia desistido dele, nem do nosso plano de fuga. Daríamos
um jeito, eu sei que daríamos!
“Como está se sentindo?” perguntei retoricamente. Era só olhar para ele e ver a resposta.
“Estou bem...” sorriu em meio a uma careta em seu rosto. “Minhas costelas doem um pouco, mas estou bem...”
Toquei
seu rosto delicadamente, com medo de que eu pudesse machucá-lo
novamente. Fernando ainda sorria, e eu desejava ter sua calma.
Observei-o.
cautelosamente, como se aquela fosse a ultima vez que nos
veríamos, mesmo tendo a certeza de que não seria. Não seria de maneira
alguma.
Eu não precisava decorar aqueles traços maravilhosos; eu já os sabia de cor.
“Fernando...”
murmurei com a pouca força que ainda me restava. Ele me encarou com
apreensão. Aqueles olhos que, mesmo depois de tanto tempo, ainda me
deixavam desnorteada. “Eu sei que você foi convocado para a Guerra...”
Dizer
aquilo em voz alta parecia ser ainda mais difícil. Talvez se eu não
verbalizasse descobriria que aquele pesadelo não era real.
Mas pela
expressão de Fernando, aquilo não passava da fria e crua realidade. O
garoto olhou para os próprios pés, e quando me encarou novamente, vi
seus olhos se avermelharem e se umedecessem.
Envolvi seu rosto com
minhas mãos e encostei nossas testas, engolindo todo aquele bolo de
choro goela abaixo. Eu me manteria firme. Eu precisava ser forte por
ele.
“Nós daremos um jeito, Fernando” falei com convicção,
obrigando-o a me encarar quando desviou o olhar com pesar. Olhei
profundamente em seus olhos e repeti. “Nós daremos um jeito.”
“Não
tem mais jeito, Luinha... Eu terei que ir...” as lagrimas começaram a
cair sutilmente de seus olhos, e a dor gritante dentro de mim voltou
abruptamente. “Mas vai ficar tudo bem! Vai ficar tudo bem, eu
prometo...”
“Você não vai pra guerra nenhuma, Fernando! Eu não vou deixar! Ainda mais quando a culpa é minha, eu não vou deixar!”
Fernando
riu levemente e eu o encarei com confusão. A expressão tranqüila
voltara para seu rosto e eu não entendia como ele podia ficar tão calmo.
Foi sua vez de colocar meu rosto entre suas mãos e de me olhar com
profundeza.
“Isso não é sua culpa, Luinha. Isso era algo que iria acontecer eventualmente. Eu não posso fugir da minha responsabilidade...”
“Sim,
você pode!” afirmei com certeza, vendo o desespero voltar a dominar
minhas ações. Entrelacei meus dedos nos seus e apertei sua mão com
força. “Quando eles baixarem a guarda, nós daremos um jeito de sair
daqui!”
“Ei, garoto! Tem uma visita para você” o guarda chamou nossa
atenção e quando nos viramos, vimos tio Lewis do outro lado da grade.
Imaginei qual foi sua reação ao ver o filho todo machucado e dentro de
uma cela. Não consegui não me culpar novamente.
“Vou deixar vocês a
sós... Vou em casa trazer alguma coisa decente para você comer.” Colei
meus lábios nos de Fernando do modo que eu amava fazer e o abracei
delicadamente.
Com relutância o soltei e passei pela grade assim que
o guarda a abriu. Cumprimentei tio Lewis com um abraço caloroso e
peguei um taxi quando sai da delegacia. Por alguma razão, não quis ir
para o meu apartamento; alguma força maior me fez querer ir até a casa
de Marry. Eu queria ter o colo de minha mãe pelo menos em um momento da
minha vida. Agora que não tínhamos John, estávamos mais unidas.
Precisávamos uma da outra como nunca, e nossas diferenças não
prevaleciam mais como antes. O que nos unia era mais forte do que o que
antes nos separava.
Assim que cheguei até a mansão, senti uma enorme
saudade de atravessar aqueles enormes portões de bronze, de cruzar
aquele jardim tão colorido, de adentrar aquele saguão exagerado. Eu
sempre achei tudo dentro daquela casa um exagero, mas nunca pensei que
pudesse sentir tanta falta daquilo tudo. Tanta falta de correr por
aquele chão de mármore, descer por um dos corrimões da escada bifurcada
enquanto Marry gritava desesperada lá em cima e John esperava rindo lá
em baixo. Quando ela e Meredith corriam atrás de mim, com medo de que eu
fizesse alguma besteira no jardim, como subir pelas árvores e cair como
já fizera antes. Até das vezes em que Marry me colocara de castigo em
meu quarto e o modo como eu sempre conseguia fugir pela janela e me
encontrar com meus amigos. E agora, tudo estava caindo aos pedaços. Eu
nunca imaginara que me encontraria naquela situação. Todo o mundo se
despedaçando, todo o meu mundo se despedaçando...
Nada era e nem
seria como antes. Eu não mais tinha John. Eu e meus amigos não mais
poderíamos mais curtir a vida loucamente, porque a realidade nos passara
a perna.
Como tudo virara de cabeça para baixo? Como minha vida mudara drasticamente em questão de meses? Como era possível?
Eu
nunca quis tanto poder voltar no tempo. Eu sabia que eu não poderia
fazer nada para mudar a baderna em que eu me encontrava, mas eu com
certeza poderia aproveitar um pouco mais dos momentos tranqüilos e
fáceis que tive...
Poderia curtir um pouco mais meu pai...
Poderia curtir um pouco mais as festas loucas com meus amigos...
Poderia curtir um pouco mais da minha estadia no sítio dos Roncato...
E
pensar que naquela época nem imaginávamos que estaríamos juntos
agora... E depois nem imaginaríamos que algo conseguiria nos separar...
A
idéia de perder Fernando para a Guerra era simplesmente insuportável.
Gritante. Dolorosa demais. Era como se tudo dentro de mim fosse rasgado e
reconstruído novamente, só para poder ser rasgado mais uma vez.
“Luinha?” escutei a voz de minha mãe a alguns passos de mim, mas eu não conseguia mover um passo do saguão.
Solucei
abruptamente várias vezes, enquanto meu desespero caia em formas de
lágrimas. Senti os braços de Marry me envolverem com ternura, e vi minha
fraqueza ceder ao peso do meu corpo. Vi Meredith correr em nossa
direção e também me abraçar, na tentativa de me manter de pé.
Mas aquilo era inútil.
Eu havia perdido todo o meu chão.
XxX
Quando
voltei à delegacia, tio Lewis ainda estava lá. Estavam os dois sentados
na caminha onde Fernando dormia e se abraçavam. Nenhum dos dois
chorava, pelo contrario, sorriam ternamente. Eu não queria atrapalhar o
momento que eles tinham, mas minutos depois os dois pareceram notar
minha presença. Tio Lewis sorriu para Fernando e se levantou, vindo em
minha direção. Sem dizer uma palavra, me abraçou da mesma maneira quando
me viu. Retribui com carinho, de alguma forma podendo sentir o mesmo
que ele sentia naquele instante. Quando me soltou, beijou o topo da
minha cabeça e deixou o local.
Olhei de esgoela para o guarda e ele
sorriu discretamente. Entrei dentro da cela e me sentei ao lado de
Fernando, que me encarava com calma.
“Te trouxe brownies...” abri a
vasilha que carregava, com os bolinhos que Meredith havia feito. Eu
sabia que Fernando adorava os brownies dela. Ele sorriu abertamente
assim que os viu e não tardou a engolir um de uma vez só. Fez uma cara
de prazer muito engraçada, e não pude deixar de rir. Enfiou outro
brownie na boca e eu nunca achei tão divertido ver Fernando comer.
A
cela estaria completamente escura se não fosse a janelinha que deixava
um pouco da luz da lua entrar. O guardinha havia trancado a cela e não
mais nos vigiava. Ele era incrivelmente gentil e compreensivo, por
alguma razão.
Quando Fernando saciara sua fome, tampou a vasilha e a
colocou no chão. Sem dizer uma palavra, entrelaçou nossas mãos e eu
descansei minha cabeça em seu ombro. Ficamos em silencio por alguns
instantes, apenas escutando a respiração um do outro.
“Me avisaram que terei que partir amanhã...” Fernando sussurrou.
Eu
poderia ter surtado. Poderia ter chorado mais um tanto, gritado e ter
feito um escândalo. Mas ao contrario de tudo o que eu imaginei, apenas
continuei em silencio. Apesar de não estar conformada – longe disso –,
eu cheguei à conclusão de que nós não poderíamos fazer nada para evitar
aquilo. E ao invés de perder meu tempo lamentando, eu queria poder
aproveitar o máximo daquele garoto sentado ao meu lado.
Eu já estava
tão anestesiada à dor, que nem sentia mais aquela agonia insuportável.
Naquele momento, eu não conseguia sentir nada além da presença de
Fernando ao meu lado, e de todas as sensações que ele me proporcionava.
Todo o amor, todo o carinho, toda a admiração que eu sentia por ele.
Nada além disso.
Tirei meus sapatos e me deitei na cama, puxando
Fernando para se deitar ao meu lado. Me exprimi naquele espaço pequeno,
entrelaçando minhas pernas na de Fernando e o abraçando pela cintura. O
garoto passou a acariciar meu rosto enquanto nos olhávamos
pacificamente. Mesmo com a pouca luz, eu ainda conseguia ver todo aquele
brilho em seus olhos. Conseguia perceber o pequeno e singelo sorriso em
seus lábios. Conseguia enxergar toda aquela beleza que eu amava
admirar.
Fechei os olhos por alguns instantes, aproveitando de seu
carinho em meu rosto; ainda assim eu conseguia ver seu rosto. Quando
abri os olhos novamente, deixei que uma lágrima teimosa caísse
solitária. Fernando imediatamente limpou-a com o polegar.
“Eu vou voltar, Luinha...” murmurou próximo dos meus lábios, encarando-me apreensivamente.
“Eu
sei que vai...” sorri, apertando-o ainda mais contra meu corpo. Nossos
narizes se tocaram e eu novamente fechei os olhos na tentativa de não
chorar.
“Então por que está chorando?” sua voz saiu como um sopro. Eu
sabia que ele também queria chorar. Eu sabia que ele também estava se
segurando. Por alguma razão que nem nós sabíamos. Abri os olhos
novamente.
“Porque já estou sentindo saudades...”
Fernando nada
disse. Colou nossos lábios sutilmente e me envolveu com seus braços,
juntando-nos ainda mais. Eu queria guardar o gosto de sua boca na minha
memória. Queria guardar o modo que nos beijávamos, e como nossos lábios
se encaixavam perfeitamente. Quando afundei meu rosto em seu pescoço,
inalei o máximo de seu perfume que consegui. Quando voltei a encará-lo,
me prendi a cada detalhe de seu rosto. Quando passei a mão por todo seu
corpo, decorei cada curva.
Eu sabia que não me esqueceria de nada. Eu
sabia que ele estava preso na minha memória. Preso no meu coração. E
que nada, absolutamente nada o tiraria de mim.
Senti meus olhos
pesarem e cederem ao meu cansaço, à minha fraqueza. Mas eu não queria
dormir. Eu lutaria contra meu corpo até o ultimo momento. Porque eu
sabia que quando eu acordasse, a hora de dizer adeus finalmente
chegaria.
Lutei.
Lutei.
Lutei mais um pouco...
Até o
momento em que manter os olhos abertos era uma tarefa impossível. Mas
assim que fechei os meus, os de Fernando vieram imediatamente em minha
mente.
“Durma bem, meu amor”
Foi tudo o que escutei antes de não sentir mais nada.
XxX
É
com muito pesar que começo a pôr essas palavras no papel. Eu não
consegui dormir noite passada. Tudo o que consegui fazer foi te observar
dormir pesadamente, a tensão ainda te dominando. Mas eu queria gravar
cada detalhe seu na minha memória, mesmo tendo em mente que eu já os sei
de cor.
Nunca pensei que pudesse existir dor tão grande quanto a
que estou sentindo agora. Tudo dentro de mim está massacrado,
principalmente meu coração. Ele está batendo mais fraco, quase parando.
Há um nó em minha garganta e o ar parece não chegar da maneira devida
até meus pulmões. Minhas mãos tremem tanto quanto suam.
Resolvi
deixar esta carta aqui ao invés de acordá-la. Eu não seria capaz de
olhá-la nos olhos e depois partir. Eu queria que você tivesse em suas
mente apenas a imagem de nós dois juntos, curtindo a presença um do
outro. Não queria que me visse indo embora, que tivesse em sua lembrança
o momento em que nos diríamos adeus.
Escrevendo aqui, com apenas o
som da sua respiração pesada e pesarosa, ao fechar os olhos posso
imaginá-la ao meu lado, sussurrando em meu ouvido palavras doces que
usualmente saem de sua boca. Posso sentir o cheiro entorpecente de seus
cabelos, seus lábios tocando os meus... Esses sentidos estão guardados
dentro da minha mente como se fossem parte de mim.
Tenho que admitir
que não sabia o que escrever quando a idéia da despedida surgiu em minha
mente. Não sabia, porque o fato de ficar distante de você por uma
fração de segundo pode me levar à loucura. Não ter seus beijos, seus
abraços, suas juras de amor, suas brincadeiras, sua voz doce em meu
ouvido, seus cabelos emaranhados no travesseiro, sua pele macia contra a
minha... Não ter tudo isso me tira o ar por alguns instantes e a dor
dentro de mim chega a ser insuportável.
Ficar longe de você parece ser uma tarefa impossível, porém não vejo outra saída.
A
razão porque dói tanto separarmo-nos é porque as nossas almas estão
ligadas. Talvez sempre tenham estado e sempre o fiquem. Talvez tenhamos
vivido milhares de vidas antes desta, e em cada uma tenhamos nos
reencontrado. E talvez em cada uma tenhamos sido separados pelos mesmos
motivos. Isto significa que esta despedida é, ao mesmo tempo, um adeus
pelos últimos dez mil anos e um prefácio ao que virá.
E sei que
gastei todas as vidas antes desta à sua procura. Não de alguém como
você, mas somente de você, porque a sua alma e a minha têm que andar
sempre juntas. E assim, por uma razão que nenhum de nós entende, fomos
obrigados a dizer-nos adeus.
Adoraria dizer que tudo correrá bem para
nós, e prometo fazer tudo o que puder para garantir que assim será. Mas
se nunca voltarmos a nos encontrar outra vez, e isto for
verdadeiramente um adeus, sei que nos veremos ainda em outra vida.
Iremos encontrar-nos de novo, e talvez as estrelas tenham mudado, e nós
não apenas nos amemos nesse tempo, mas por todos os tempos que tivemos
antes, e por todos que teremos depois.
Talvez um dia eu vá a muitos
lugares, conheça muitas pessoas... Mas quero dizer sem qualquer
esperança ou planos, que por mais tempo que fique longe, por mais
pessoas que eu conheça, por mais lugares que eu visite: nem por um
segundo me esquecerei de você. E meu coração, mesmo despedaçado, irá
amá-la para sempre. Não só pelo que você é... Não só pelo que você já
fez, mas pelo que eu passei a ser e fazer depois do momento em que você
entrou na minha vida. Então aqui venho humildemente agradecer por tudo
que você me deu e por tudo que nós vivemos.
Por todas as conversas,
todas as vezes que cuidou de mim após uma briga estúpida, todas as vezes
em que me deu um beijo por nada, por todos os abraços, por todas as
calorosas brigas que sempre acabavam no sofá do seu apartamento, pelos
momentos em silêncio que mais pareciam um diálogo profundo, por todas as
vezes que me acolheu e principalmente: por nunca ter desistido de mim.
Dei-lhe chances para me deixar em diversos momento durante nosso tempo
juntos, e em nenhum deles você pareceu ser esperta o suficiente para se
afastar. Talvez se você tivesse o feito, não estaria sendo tão pesaroso
este momento. Entretanto, não me arrependo de nada do que vivemos. Na
verdade, os momentos que passei com você foram os melhores de toda a
minha existência. Momentos incríveis que pensei não ser capaz de
presenciar. Você trouxe luz à minha vida no momento em que eu mais
precisei. Você me estendeu as duas mãos nos diversos momentos em que
caí, e nunca apontou o dedo em minha cara nos momentos em que falhei.
Dizem
que somente quando encontramos o amor, é que descobrimos o que nos
faltava na vida. Você era tudo o que faltava para me completar, para
trazer paz em minha vida, para dar um sentindo nas coisas que eu não
entendia...
Eu posso estar a milhas de você, mas quando fecho os
olhos posso senti-la ao meu lado; e com essa simples imagem meu coração
dispara.
Você, Lua Blanco, é a pessoa mais maravilhosa que conheci.
Seu jeito doce de me olhar, de me dizer que tudo vai ficar bem... Sua
risada nem um pouco discreta...
Como amo seu sorriso. O modo como
você sempre está disposta a ajudar ao próximo, o modo como você luta
pela justiça, por um mundo melhor...
Pelo amor de tudo que é
sagrado, sempre se lembre que eu jamais tirarei você do meu pensamento.
Sempre te levarei aonde quer que eu vá.
E eu lhe peço que nunca me
esqueça. Apesar de você sempre me dizer, eu sempre fico inseguro quanto a
nós dois. Mesmo você sempre me dizendo que não é melhor do que eu, nada
tira da minha cabeça o contrario. Você poderia ter o garoto que
quisesse, e até hoje me instigo do porquê de você estar comigo. Um dia
vou descobrir o que tenho de tão especial para ter te atraído.
Devo
agradecer o Benjamin por ter te entregado a mim. Agradeço até pelos
murros que levei, já que por você eu passaria por tudo aquilo quantas
vezes que fosse preciso.
Não queria despertar a tristeza dentro
do seu coração. A última coisa que eu quero nesse mundo é ver uma
lagrima escorrendo do seu rosto. Eu já vi algumas vez e não quero
repetir a cena. Por isso, peço que seja forte. Quando a saudade for tão
grande, de modo que penses ser quase impossível de suportar, lembre-se
de tudo o que vivemos, de todas as deitadas na grama do sítio, da nossa
viagem à Salford, das nossas idas até o parque, de quando costumávamos
dançar como se não existisse mundo à nossa volta; lembre-se das nossas
mãos dadas e do cheiro do meu perfume, que logo estarei ao seu lado. A
saudade pode ser enlouquecedora, não deixe que ela lhe roube a razão.
Pense na saudade como uma coisa boa: quer dizer que eu ainda significo
algo pra você, que seu coração ainda bate por mim.
“Para estar junto não é preciso estar perto, e sim do lado de dentro.”
Leonardo da Vinci
Tome
por base esta frase, lembre-se dela toda vez que se sentir triste,
sempre que a dor dominar seu coração. Lembre-se do nosso amor, lembre-se
que, aonde quer que eu esteja, é você que vejo quando fecho os olhos. É
você a razão do meu coração palpitar. É você o meu primeiro e ultimo
pensamento no dia.
Você é todas as razões, todas as esperanças, e
todos os sonhos que sempre tive, e o que quer que nos aconteça no
futuro, todos os dias que passamos juntos foram os melhores dias da
minha vida.
Antes de termos nos encontrado, atravessava a vida sem
sentido, sem razão. Sei que de alguma maneira, todos os passos que dei
desde o momento em que comecei a andar eram passos dirigidos ao seu
encontro. Estávamos destinados a encontrarmo-nos. Mas agora comecei a
perceber que o destino pode magoar uma pessoa tanto quanto a pode
abençoar, e dou por mim a perguntar-me porque razão - de todas as
pessoas do mundo inteiro que alguma vez poderia ter amado - tinha de me
apaixonar por alguém que vai estar distante de mim. Parece não ter
sentido.
Espero que possa me perdoar um dia. Mas não quis me despedir. Não quis, pois sei que nos veremos novamente.
Esta não é uma carta de despedida.
É apenas um breve adeus, o qual agora termina com um simples, mas sincero te amo.
Fernando Roncato, 2 de Dezembro de 1964.
Continua...
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