Capítulo 33
Bolton, 15 de maio de 1965
Cinco meses. Não dá pra acreditar
que se passaram cinco meses desde que você foi pra Irlanda. A minha
saudade de você é quase irracional, se quer saber. Se não fosse por essa
coisinha dentro de mim, não sei o que seria de mim. Sim, eu sou
dramática, mas não deixa de ser verdade. Esse bebê me trouxe novas
expetativas. Por falar nele, minha barriga está cada dia mais evidente.
Ainda me sinto um pouco estranha, mas o pai de Micael disse que é
normal. É, o pai de Micael agora é meu médico, já que o Doutor Thompson
teve que se mudar para Londres. Eu ando comendo mais que o normal –
então você pode imaginar que estou comendo muito mesmo. Às vezes tenho
alguns enjoos e minha mãe disse que eu puxei isso dela. Mary disse que
certa vez foi até para o hospital do tanto que vomitava. Ainda não
cheguei nesse estágio, e espero que não chegue também.
O melhor de
estar grávida é que todos estão me tratando como uma princesa.
Principalmente seu pai e Meredith – e sei que você seria pior que eles,
duvido que me deixasse até andar. Eles agora parecem que vivem para
cozinhar minhas comidas favoritas, e disso não posso reclamar. Entrei
para a faculdade! Eu sei que você iria adorar essa ideia. Está sendo
fantástico. Meus professores são ótimos e estudar sobre meus autores
favoritos é um sonho. Voltei a escrever também. Escrevi alguns poemas,
quando eu criar coragem os mandarei para você. Agora invertemos
posições, não é mais você que escreve as coisas para mim.
E Chay
escreveu para Melzinha que você quebrou três dedos esmurrando uma parede
quando ficou sabendo da notícia. Eu já tenho preocupações o suficiente
com as bombas caindo por aí, Fernando Roncato, não me faça ter
preocupações extras. Eu sei que você gostaria de estar aqui, e eu queria
isso tanto quanto você, acredite em mim. Mas infelizmente não podemos
fazer nada, e eu me cansei de revoltar com isso. Temos que aceitar o
fato de que você estar longe e só torcer para que essa guerra acabe
logo. Eu ainda estarei aqui esperando por você quando voltar, com a
linda Joanna nos braços.
Eu ainda não sei o sexo, mas também sinto
que é uma menina. E sim, você é louco por ter esses pressentimentos,
isso é coisa de grávida! Pensei em Joanna... O que você acha? Minha mãe
chorou quando sugeri esse nome. O bebê também deu a ela novas
perspectivas. Acho que a ajudou a superar a morte de John. Ela voltou a
pentear os cabelos e usar maquiagem, está parecendo a Mary de
antigamente – tirando a maldade. Ela tem sido incrível, Fernando, queria
que você estivesse aqui para ver. O enxoval já está praticamente
completo graças a ela, que está completamente empolgada. Já decorou um
dos quartos de hóspedes; pintou as paredes de um roxo claro – que irá
agradar tanto se for menina ou menino, como se um bebê fosse importar
com as cores de seu quarto – e pintou de branco o berço que seu pai fez.
O quartinho está ficando uma gracinha. Melzinha está desempenhando um
papel de madrinha fantástico. Deu um chá de panela incrível com as
socialites de Bolton e depois dos presentes que ganhei, juro que nunca
mais falo mal delas.
A mãe de Chay também estava lá. Ela me olhava de um jeito como se agradecesse por eu não ter engravidado do seu filho.
E
não seja bobo, eu quero mais do que tudo que esse bebê se pareça com
você. Eu sei que sou linda – modéstia parte – mas quero que ele tenha
seus lindos cabelos castanhos e esse seu sorriso maravilhoso, que sempre
me deixa calma toda vez que me lembro dele.
E sobre seu pedido de
desculpas... Não me faça ir até aí te dar uns tapas na cabeça, Fernando.
Não é sua culpa que você está ai. Como eu já disse, não podemos mais
ficar lamentando. Agora mais do que nunca temos que pensar apenas no
nosso futuro.
Te amo muito, amor.
Sempre sua,
Lu.
Eu
já tinha me acostumado por completo com o fato de estar grávida. Os
chutes de Joanna/John dentro de mim eram motivo de festa para todos à
minha volta, e uma felicidade imensurável tomava conta de mim a cada dia
que passava. Minha barriga já estava grande e meus amigos – nem eu –
pareciam se cansar de tocá-la. Micael e Arthur ficavam completamente
abobalhados sempre que me viam.
Todo dia que Melzinha ia me visitar
me levava presentes e mais presentes, no nome dela e de Chay. Ela sempre
beijava minha barriga e conversava com o bebê que estava lá dentro,
dizendo que aquele beijo fora mandado pelo tio Chay.
Sem falar na
disfunção hormonal. Eu era uma bomba relógio ambulante, prestes a chorar
ou rir histericamente a qualquer momento. Também estava pesando cem
quilos provavelmente, devido ao tanto que eu comia. A ansiedade me
consumia mais e mais. Eu seria capaz de criar um filho sozinha?
E cada dia que passava, eu sentia ainda mais a falta de Fernando.
Dublin, 22 de Julho de 1965
Esses
correios ainda vão me dar nos nervos. Ter que esperar dois meses por
uma carta sua é quase tortura. Isso quer dizer que você está com sete
meses! SETE MESES! Eu estou cada vez mais desesperado. Fico imaginando
como você está. Se eu estivesse aí estaria surtando muito mais que você,
tenho certeza. Fico imaginando como você está. Fisicamente, quero
dizer. Todos sempre dizem que as grávidas ficam maravilhosas, então você
deve estar perfeita. Eu estaria te mimando de todas as maneiras
possíveis, pode ter certeza. Queria estar aí acariciando sua barriga
linda, mas quando penso nisso ainda sinto um pouquinho de revolta. Eu
sei que você disse que temos que nos conformar, mas é difícil demais.
E
sim, achei sensacional você ter voltado para a faculdade. Imagino o
quão empolgada você deve estar. Pare de bobeira e me manda um de seus
poemas. Ter o que encarar além de suas cartas e sua foto será
maravilhoso. E eu continuo escrevendo músicas, principalmente sobre
você, então não queira tirar esse posto de mim! Qualquer distração a
mais é ótimo para mim.
Fui transferido para a base de Dublin. Meu
oficial decidiu que sou um bom soldado, então fui mandado pra cá, junto
com Chay. As coisas aqui são mais difíceis, mais perigosas. Estou
escutando tiros nesse momento fora da base... Em Belfast minhas tarefas
eram mais simples. Quero dizer, eu não era um soldado de campo, meu
trabalho era limitado a lavar os uniformes dos meus superiores, levar e
receber as cartas nos correios, até ajudava na cozinha às vezes. Aqui em
Dublin as coisas são diferentes. Estou no miolo da rebelião. Vi pela
primeira vez uma pessoa ser morta. Bem na minha frente. Era um civil.
Uma pessoa inocente. Ainda escuto suas súplicas quando vou dormir, mas
não tinha nada que eu pudesse fazer...
Mas acho que é estupido dizer
isso pra você, não quero que fique preocupada. Está tudo bem. Vai ficar
tudo bem. Eu sei disso porque quando começo a ficar um pouquinho
desnorteado, penso em você e em todo o futuro que tempos pela frente.
Você não tem noção da calma que você me traz só de olhar para o sorriso
da sua foto que eu trouxe.
E sobre o nome, acho Joanna lindo. Sei
que John ficaria muito feliz. E eu faço questão que você mande um enorme
beijo para sua mãe, e fala que até dela eu sinto saudades. Estou
falando muito sério. Sete meses parece uma eternidade.
Quero estar perto de você de novo. Não aguento mais.
Te amo mais do que tudo.
Sempre seu,
Fernando.
PS.: No verso dessa carta está uma das músicas que venho escrevendo. Ela foi toda pensada em você. Espero que goste.
“Life is getting harder day by day
And I don't know what to do, what to say
And my mind is growing weak every step I take
So uncontrollable now they think I'm fake
But I’m not alone.
And I get on the train on my own
And my tired radio keeps playing tired songs
And I know that there's not long to go
When all I wanna do is just go home
But I'm not alone
People rip me for the clothes I wear
Everyday seems to be the same, they just swear
They just don't care
But I'm not alone”
Um
mês e meio havia se passado desde que eu enviara a ultima carta para
Fernando, no dia 10 de Setembro. A ultima que ele havia enviado fez com
que meu coração se apertasse insuportavelmente dentro do meu peito.
Estava muito mais melancólica se comparada às outras, que ainda tinham
um pouco de humor. Eu sabia que aquela guerra estava o afetando cada dia
mais, e não havia nada que eu pudesse fazer.
O desespero me acolhia
a cada segundo que passava. A guerra tinha tomado um novo nível de
violência, sendo comparada com a Segunda Guerra Mundial, em menores
proporções. Para piorar tudo, Julian me dizia que as negociações entre
os governos iam de mal a pior, e aquela guerra não tinha nem previsões
para acabar.
O mundo inteiro estava dividido entre apoiar a
Inglaterra e a Irlanda do Norte ou o Eire. Eu não importava quem apoiava
quem, só queria meu Fernando de volta para casa. As imagens que
passavam na TV não me ajudavam em nada; eram tiroteios, pessoas
sangrando e gritando, bombas destruindo ruas inteiras. Eu chorava
desesperada toda vez, rezando para que Fernando não estivesse no meio
daquele caos, e então vinha Meredith e desligava a TV numa inútil
tentativa de tentar me acalmar. Ela dizia que eu não poderia ter aquele
tipo de estresse tão próximo ao dia de dar à luz. Aí sim eu me
desesperei por completo. Eu poderia ter um bebê a qualquer momento. Eu
estava tão acostumada em tê-lo ali dentro de mim que eu tinha medo de
não saber o que fazer assim que ele nascesse. Teria a ajuda de Mary e
Meredith, claro, mas era diferente. Eu não sabia como ser uma mãe. Tinha
medo de estragar tudo. Eu só tinha dezenove anos recém-adquiridos, eu
não sabia nada sobre ser uma mãe. E durante algum tempo indeterminado,
eu teria que saber como ser mãe e pai ao mesmo tempo. Era demais.
Peguei
a última carta que recebi de Fernando e reli seu verso, onde estava sua
musica escrita a mão. A vida está a cada dia mais difícil. E eu não sei
o que fazer, o que dizer. Eu queria mais do que tudo estar ao lado
dele, para mostrar que ele realmente não estava sozinho. Meus
pensamentos estavam com ele vinte e quatro horas por dia. E minha mente
vai ficando fraca a cada passo que eu dou.
Eu não gostava nem de
imaginar o que ele estava passando. Fernando era a pessoa mais pacífica
que eu conhecia, e eu tinha medo de pensar o que aquela guerra poderia
fazer com ele, não só fisicamente, mas principalmente em seu
psicológico. Eu não tinha nem ideia de como seria ver alguém morrer bem
na minha frente, e não podia nem imaginar o que se passava pela cabeça
dele. Fernando era inocente e bondoso. Eu tinha medo do que aquele caos
poderia causar nele. Não queria que ele perdesse aquele jeito moleque,
sempre pronto a ajudar quem fosse que precisasse, sempre pronto a
acreditar no melhor das pessoas. Eu não conseguia imaginar Fernando...
matando alguém. O que aquilo podia fazer com o psicológico de uma
pessoa?
E foi pensando em toda a situação de Fernando que senti a
primeira pontada na barriga. Foi uma dor leve, mas eu já sabia o que
estava por vir. Gritei pelo nome de Mary e ela veio correndo para o meu
quarto, já preparada para qualquer coisa, uma vez que eu estava nos
últimos dias de gravidez. - Mãe, acho que acabei de ter minha primeira
contração.
Eu já não sabia dizer se estava completamente desesperada
ou inteiramente feliz. Ter a sensação de que a qualquer momento eu
teria um bebezinho minúsculo nos meus braços era apavorante, mas ao
mesmo tempo me trazia uma alegria sem cabimentos.
Mary soltou um
grito de alegria e gritou por Meredith e Noel. Uma malinha com roupas
para mim e para o bebê já estava arrumada há dias por precaução, então
tudo o que eu tinha que fazer era deixar com que Mary e Noel me
ajudassem a descer aquela escada inconvenientemente grande. Senti outra
pontada, dessa vez um pouco mais forte, me fazendo levar a mão até minha
enorme barriga em sinal de proteção.
- Mary, ligue para Melzinha,
peça para ela ir ao hospital e avisar aos meninos! – gritei desesperada.
Eu queria que as pessoas mais importantes da minha vida estivessem lá
naquele momento tão especial. – E AH! Claro, ligue para o tio Lewis!
Noel me ajeitou no carro, enquanto Mary sentava ao meu lado. Meredith iria para o hospital assim que fizesse as ligações.
As
contrações começaram a ficar ritmadas, mas eu não sabia exatamente qual
era o tempo de intervalo entre elas, mas sabia que Mary estava
marcando. Tudo o que a dor me deixava pensar naquele momento era em
Fernando. A vontade de tê-lo ali fez com que a dor não fosse nada; a dor
de sua ausência conseguia ser infinitamente pior.
Comecei a chorar,
sem saber se era pela dor das contrações ou pelo fato de Fernando não
estar ali segurando minha mão. Ele nem ao menos sabia o que estava
acontecendo, e eu nem sabia onde ele estava, muito menos como estava.
Gritei, fazendo com que Noel pisasse no freio mais fundo e em poucos
minutos já tinham enfermeiros rodeando o carro para me tirar dali. Me
sentaram em um a cadeira de rodas, enquanto alguém me pedia para
respirar fundo. Eu chorava, mas ninguém sabia verdadeiramente porque eu o
fazia. Milhares de pensamentos perturbadores rodeavam a minha mente. Vi
Fernando levar tiros em diferentes partes do corpo dezenas de vezes, o
que me fez gritar novamente. Eu não poderia ter aqueles pensamentos, não
agora que estava prestes a dar à luz. Aquele era um momento especial,
eu tinha apenas que pensar em como ele estaria feliz se estivesse ao meu
lado.
Inspirei e expirei profundamente diversas vezes, tentando
espantar aquelas imagens horrorosas da minha mente. De qualquer maneira,
a cada segundo que passava a dor ficava maior e me impedia de pensar em
qualquer coisa que não fosse a minha vontade de ter logo aquele bebê.
Eu
já estava na sala de parto quando Melzinha chegara com Micael e Arthur.
Ela não havia conseguido encontrar Julian, aparentemente. Tio Lewis já
havia chegado há minutos atrás. Eu estava ali, deitada e gritando o que
parecia uma eternidade, mas na verdade, se passara apenas uma hora.
Aparentemente, o bebê não estava posicionado da maneira correta para
poder sair, por isso eu teria um probleminha a mais.
O pai de Micael
estava sentado de frente para as minhas pernas, enquanto duas
enfermeiras pressionavam minha barriga e diziam palavras de incentivo.
Meus amigos pareciam que estavam prestes a gritar comigo. - Vamos lá,
Lu, empurre com mais força! – o pai de Micael disse, como se eu já não
estivesse empurrando com todas as forças do meu corpo. Quis dar um chute
em sua cabeça, já que minha posição era favorável a fazê-lo. Segurei a
mão de tio Lewis com mais força, que encarava minha barriga e depois
para mim com olhos desesperados. Ele era quem parecia que pariria a
qualquer momento.
- Só mais um pouco! Já consigo ver a cabeça! – o
Sr. Borges disse finalmente, e eu sabia que aquela agonia estava prestes
a acabar. Em poucos minutos eu finalmente seguraria meu bebê. O rosto
de Fernando veio de imediato em minha mente, e eu podia vê-lo sorrindo
como se estivesse ao meu lado. Aquilo me deu forças o suficiente para
que eu pudesse dar o empurrão final, e eu então pude escutar um choro
estridente em seguida. Lágrimas saltaram dos meus olhos como uma
cascata, enquanto as enfermeiras envolviam aquele bebê pequenininho e
ensanguentado em uma manta azul. As mulheres do recinto – Melzinha,
Meredith e Mary –, choravam tanto, ou se brincar, mais do que eu. Tio
Lewis tinha os olhos encharcados, bem como Micael e até mesmo Arthur. As
enfermeiras pareceram demorar uma eternidade até colocarem meu bebê em
meu colo. Pensei em Fernando quando vi seus cabelinhos castanhos e as
lágrimas embaçavam meus olhos completamente. Achei que explodiria de
felicidade.
“Bem-vinda ao mundo, Joanna.”
Dublin, 20 de Novembro de 1965
Eu
não estou conseguindo escrever direito. As lágrimas não estão deixando.
Acho que nunca fiquei tão feliz na minha vida depois de ler a sua
última carta. Acho que você já cansou de ler o tanto que eu queria estar
aqui, mas acho que não falei o suficiente. É gritante a minha vontade
de estar aí. De ver nossa filhinha nos seus braços. De pegar nos seus
cabelinhos castanhos, olhar seus olhinhos e falar para ela o quanto eu
já a amo, sem nem ao menos tê-la visto. Nunca pensei que existisse
sentimento assim. Não consigo explicar bem o que tá se passando dentro
de mim, é uma confusão só. Mas eu acho que eu poderia ter um troço a
qualquer momento. Não consigo parar de rir e gritar para todo mundo o
nome da nossa filha. Abracei Chay tão forte que quase quebrei suas
costelas. Dei um tiro sem querer no teto do nosso alojamento. Quase
beijei na boca do meu General. Não dá pra calcular minha felicidade.
Minhas mãos estão tremendo e eu não consigo parar de chorar – devo estar
chorando por mais de três horas seguidas. Obrigada pelo melhor presente
da minha vida, Lu, e isso me faz te amar cada dia mais, e mais, como se
fosse possível guardar tanto amor e saudade dentro de uma pessoa só.
Por favor, amor, não se esquece de dizer à nossa pequena Joanna todos os
dias que eu a amo muito e que vou voltar logo, logo para poder
abraçá-la o dia inteiro, para nunca mais largar. E me mande uma foto
assim que puder. Estou desesperado de curiosidade aqui para saber como
ela é.
Peça pros garotos cuidarem bem de você e da minha princesa.
Sei que meu pai deve estar em cima de vocês duas vinte e quatro horas
por dia. Amo vocês mais que tudo nesse mundo.
Pra sempre seu,
Fernando.
-
Plantão News. O Primeiro-Ministro Harold Wilson anuncia oficialmente o
fim da Guerra Eire. O exército britânico foi capaz de aprisionar o
ditador Ramsay Baldwin, que está sendo mandado para a prisão de Brixton,
em Londres.
Continua...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Vamos comentar LuCáticas?